Campo acadêmico, ideologias e incoerências

Em nossa sociedade, a ideologia está impregnada em tudo. Ela está presente em todas as atividades humanas. Porém, a ideologia que predomina na sociedade, enquanto cultura, modo de vida e senso comum, aparenta ser natural. A ideologia liberal-conservadora “funciona de maneira a apresentar suas próprias regras de seletividade, tendenciosidade, discriminação e até distorção sistemática como “normalidade”, “objetividade” e “imparcialidade científica”.*

Mas também a crítica à ideologia liberal-conservadora tende a recair no mesmo equivoco, isto é, a reivindicar o status de ciência desvinculada da ideologia. Por outro lado, esta crítica tende a ficar prisioneira das disputas intestinas da política acadêmica, a ser utilizada como combustível para a ocupação de cargos e a consolidação do poder burocrático e dos interesses particularistas. A crítica ideológica torna-se mero discurso legitimador da política interna ao campus e carregada de sentido maniqueísta.

A ideologia liberal-conservadora está entranhada em nosso ser. Sua capacidade de legitimação é imensa. Mesmo os mais revolucionários são influenciáveis e influenciados por ela. Se a retórica é crítica, as atitudes nem sempre o são. Nossas ações se pautam por necessidades imediatas e tendemos a reproduzir o que é predominante na sociedade. Assim, é possível ser crítico à predominância dos valores mercantis e ser um consumidor quase obsessivo e aceitar acriticamente estes mesmos valores como critério de ascensão no campus.

Por outro lado, há comportamentos de adaptação à estrutura do Estado, ainda que abominável no âmbito da retórica. O que é a política acadêmica senão a disputa ferrenha e apropriação por grupos e indivíduos dos recursos estatais? Claro, as forças em disputa no campo acadêmico precisam metamorfosear seus interesses particularistas no discurso universal da defesa da universidade pública, da comunidade acadêmica e da sociedade (e até mesmo, da humanidade).

Temos, portanto, algumas situações no mínimo irônicas. O anti-capitalista radical no âmbito da retórica corre atrás de patrocinadores capitalistas para o bancar eventos acadêmicos, nos quais, invariavelmente, predominam o discurso da revolução anti-capitalista. O crítico da propriedade privada e do Estado busca os recursos privados e estatais. O revolucionário de plantão nega a política burguesa e o Estado, mas luta politicamente para ocupar cargos na instituição estatal e garantir a sua gratificação – poder e moeda corrente.

Não quero julgar, mas apenas observar o quanto somos incoerentes. Estamos vinculados ao sistema ideológico dominante e este influencia nossas ações. Vivemos sob determinada ordem social e, por mais que a neguemos, somos contraditórios. Nem sempre teoria e prática se complementam. Terminamos por reproduzir a ideologia dominante, ainda que ideologicamente a neguemos. Portanto, não deveria ser surpresa quando observamos que, no campo acadêmico, críticos do sistema vigente e profetas do paraíso na terra, reproduzem as mesmas atitudes que criticam nos opositores. Recorrem, muitas vezes, a meios semelhantes, encobertos pela retórica crítica e universalizante.

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* MÉSZÁROS, István. O Poder da Ideologia. São Paulo: Ensaio, 1996, p. 13.

15 comentários sobre “Campo acadêmico, ideologias e incoerências

  1. Ozaí, ao ler o seu texto republicado nao pude deixar de lembrar a leitura de um livro chamado senilidade, de italo svevo. Talvez vc nao conheça, mas a esterilidade da academia foi muito bem retratada no genial “Os ùltimos Intelectuais” de Russel Jacoby. O que há ainda de digno e de vivo na universidade deve-se à existência e luta de funcionários e alunos. Não é por acaso que os professores se esforcem tanto por fazer o mundo esquecer que existem funcionários e estudantes na universidade, que se postem contra as suas lutas, que busquem cercear as suas vidas, eliminar sua autonomia, até mesmo a milenar cultura estudantil é combatida. É a velhice meu caro. A velhice de um modelo que denomiraram de pedantocracia. Na manutenção de seu poder, à custa de alunos e da exploração, por vezes aviltante, dos funcionários geralmente pessimamente pagos, todos os professores se enleiam na mesma teia, sejam de esquerda ou de direita. Eles são hipócritas. So eles mesmos é que não enxergam. Todos os demais sabem. Mas a esterilidade dos professores nao tem significado a esterilização de toda a sociedade (petulância seria considerar a atrofia dos professores como sinônimo da atrofia geral, e elitismo também). Há muitos lutadores pelo país afora, mesmo dentro da universidade – funcionários, alunos. Há sem- terra, sem teto, movimentos de luta pelo transporte público, cursinhos comunitários, redes de solidariedade, etc. Num país tão desigual como esse, so nao encontra luta e pessoas de vigor a ajudar a lutar quem nao quer.

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  2. [James Simões de Brito] [james.brito@uol.com.br] [Maringá, Paraná, Brasil] Continuação do comentário acima. Não obstante, precisamos produzir ainda mais teorias no âmbito dos movimentos populares, haja vista que, em tempos em que pensar revolucionariamente, não é moda, e somos criticados de anacrônicos, diante de Fukuyama, e a teoria do fim da história, diante do desmoronamento do “socialismo real”. Devemos descobrir dentro das condições concretas, meios concretos, para, dentro e na história, agirmos com protagonismo. Neste momento hodierno, da a impressão que estamos amarrados… Creio que temos que produzir reflexões e ações que fomente as bases para um “possível histórico”, aproveitando os espaços existentes, tais como: os movimentos existentes e os muitos conselhos comunitários. Os maiores limites, talvez sejam, o tempo, a família, os filhos, a necessidade de produzirmos a vida, as represálias, e os determinantes da cotidianidade. O quê o professor tem a dizer a respeito deste meu desabafo? 04/05/2007 21:01

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  3. [James Simões de Brito] [james.brito@uol.com.br] [Maringá, Paraná, Brasil] Professor Ozai, com relação a sua resposta a meu comentário: “O problema é que a nossa utopia sempre nos remete para o futuro distante e, quem sabe, inatingível. É mais ou menos como acreditar que a morte nos trará o paraíso e, então, todos os nossos sofrimentos serão compensados. Em qualquer dos casos, estaremos mortos!!!”, e em função de seu pedido: “Sugiro que você publique o seu comentário no blog (a resposta). É importante que outras pessoas leiam”. Queria dizer que me Lembro do Fórum Social Mundial em que, Saramago defende não-utopia e Galeano polemiza. “Escritor português monopoliza atenções ao atacar utopias e pregar necessidade de ações concretas”. Compatível com o quê o professora fala, também vejo a necessidade de ações concretas. Diante deste impasse, não podemos ser ativistas, tão pouco, teóricos paralisados. Temos que ter uma práxis transformadora. 04/05/2007 20:59

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  4. [João Bosco] [joaobfer@terra.com.br] [Araxá -MG] Prezado Ozaí, por quê? Samos todos iguais? Almejamos as mesmas coisa? Algumas respostas são encontradas nos excelentes comentários postados acima por James S Brito, ao falar do Ser Social de Marx.24/04/2007 09:11

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  5. RESPOSTA:Re: blogCaro James, muito obrigado por acessar e comentar o blog. Gostei do seu comentário. Com a transformação do modo de produção, isto é, com a revolução e o comunismo, tudo será superado. O problema é que a nossa utopia sempre nos remete para o futuro distante e, quem sabe, inatingível. É mais ou menos como acreditar que a morte nos trará o paraíso e, então, todos os nossos sofrimentos serão compensados. Em qualquer dos casos, estaremos mortos!!! Enquanto isso não chega, abraços e um ótimo final de semana para todos nós, ozaí

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  6. [James Simões de Brito] [james.brito@uol.com.br] [Maringá, Paraná, Brasil] Continuação do comentário acima… os meios para tal estão monopolizados, o “ethos” individualista burguês e a ideologia liberal-conservadora encontra-se entranhada em nosso ser, fazendo-nos burguês, não porque aceitamos ou defendemos a não transformação da sociedade, mas porque, desde o morador de rua até o banqueiro, o que há de comum é justamente o seu ser social, que é burguês. Não obstante, isto não representa que não se possa negar ou superar esta condição, mas esta realidade só poderá ser mudada dentro, e na própria história, justamente, com a alteração dos modos de produção capitalista para outra forma, que seja social na apropriação das riquezas. 20/04/2007 22:11

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  7. [James Simões de Brito] [james.brito@uol.com.br] [Maringá, Paraná, Brasil] Ser coerência com a prática revolucionária no contexto atual é enfrentar desafios que terá um alto preço. A exemplo desta afirmação, temos K. Marx, que por ser na prática coerente com o seu discurso, foi numa linguagem comum e atual, “gelado” na vida acadêmica. Outro exemplo pertinente para este momento, é o de Antônio Gramsci, que passou quase onze anos preso por ter um discurso coerente com a sua prática de vida. Acredito que dentro deste contexto de incoerência entre a prática e o discurso, não só na academia, mas em qualquer outra relação social estabelecida, uma descoberta de Marx pode-nos auxiliar nesta questão, não sendo anacrônica. Marx acreditava que o homem não é o quê pensa de si mesmo, ou ainda o quê acredita ser, mas o quê o seu ser social determinava. Desta forma, precisamos questionar, como o ser social se forma? Pressupostamente, o ser social, se forma através do trabalho, isto é, na produção e reprodução de sua vida. Neste entendimento, a sociedade hodierna onde todos 20/04/2007 22:05

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  8. RESPOSTA:Re: blogCaro Daniel, obrigado por comentar. Concordamos, mas não acho que o partido seja a redenção. Os partidos também reproduzem muito da podridão que temos no campus e na sociedade em geral. Há várias formas de militância, não apenas partidária. Está em um partido não torna o sujeito potencialmente melhor – e vice-versa. E, por outro lado, a vinculação entre os partidos e os intelectuais, e me refiro aos partidos ditos revolucionários, é historicamente contraditória. Muitas vezes, é exigido ao intelectual que se submeta à lógica da ortodoxia e dogma partidário. Respeito quem milita em partidos, mas como diz o popular “tô fora!”. Abraços e ótimo final de semana, Ozaí

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  9. [Daniel M Delfino] [tzitzimitl@terra.com.br] [politicapqp.blogspot.com] O fenômeno dos intelectuais que se intitulam “de esquerda” e adotam práticas de direita na vida cotidiana e profissional-acadêmica é bastante disseminado e pernicioso. O único antídoto para essa contradição é a prática. Não há como um intelectual ser “de esquerda” se toda sua atuação permanece restrita ao interior dos muros da universidade. Há que se ter alguma intervenção prática na realidade, alguma miltância em partido ou movimento social. Do contrário o discurso sobre luta de classes vira só mais uma mercadoria entre outras disputando verbas no mundinho mesquinho da universidade. Sem relação concreta com a vida dos trabalhadores, o discurso de esquerda não ganha qualquer base real para ser de fato transformador e criar de fato relações sociais que superem o utilitarismo rasteiro da vida burguesa.19/04/2007 08:51

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  10. [Jovino Moreira da Silva] [jomosil@gmail.com] [www.jovinomoreira.zip.net] [Jequié/Bahia/Brasil] Amigo Ozaí: As suas reflexões são importantes porque são poucos os que procuram não criticar, mas mostrar os caminhos que as pessoas e grupos utilizam para chegar ao poder ou ocupar espaços de militância proclamando apoio a nomes e idéias em função de momentos oportunistas.A sociedade burguesa e o capitalismo só servem para caixa de pancadas enquanto não entramos em greve no campus, enquanto não estamos pecisando fazer poupança, enquanto não estamos carecendo de um emprego no estado onde vamos nos acomodar e acomodar o discurso dito revolucionário. Ideologia, para quê? quando estou comendo, bebendo, tranzando com a amiga de algum companheiro, quando estou dirigindo aquele carro potente produzido pela vil montadora que explora os companheiros roubando-lhe a mais valia, etc. etc. Tudo isto, Amigo Ozaí, é o que temos visto e vivido em nossos campus e em nossas organizações ditas combatentes da ideologia liberal conservadora. Às vezes é conveniente ser de esquerda neste país.18/04/2007 09:10

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  11. [eduardo] [dudu.oliva@uol.com.br] [http://dudu.oliva.blog.uol.com.br ] As múltiplas realidades que o homem são conceitos construídos. 18/04/2007 24:05

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  12. [Vivian] [vivetica@hotmail.com] [Campina Grande, PB] Olá Ozaí, Ao ler seu texto lembrei-me logo de uma aula que tive essa semana sobre “A indústria cultural” de Adorno. Discutíamos a angústia do autor, ao expressar que a ideologia estava por toda parte, e que a partir da cultura ela perpassava o cotidiano da massa, tanto para legitimar os interesses dominantes como para regular e normativizar comportamentos. Percebemos que um texto escrito durante a segunda guerra conseguia está, em alguns pontos, bastante atual. Nos víamos como Adorno, sem conseguir apresentar soluções que nos fizesse transpassar essa contradição em que vivemos, uma vez que consumimos os produtos dela. O meio acadêmico, assim também, está substanciado de ideologias, que tal como a escola, reproduz as desigualdades sociais. Fico pensando em que nós, professores, poderíamos contribuir para uma transformação mais efetiva, que realmente transpusesse os muros acadêmicos e atingisse a sociedade. Muito vem sendo discutido e pouco vem sendo aplicado. Parabéns pelo texto!17/04/2007 19:13

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  13. [Francisco Giovanni D. Vieira] [fgdvieira@wnet.com.br] [http://www.dad.uem.br/marketing] [Maringá – PR, Brasil] Prezado Ozaí, ao concluir sobre a contradição, o seu texto apenas reflete a dimensão humana. Como diria Nietzsche, “humana, demasiadamente humana”. Nem vou adentrar a questão da contradição histórica dos indivíduos e sistemas, imbricada na vida em sociedade, mas aproveito para dizer que ao longo de minha vida no “campus” estou cansado de ver revolucionários mundiais que são verdadeiros ditadores residenciais. A retórica é fácil, meu caro. No meu tempo de faculdade o sujeito andava com O Capital embaixo do braço e dizia-se que esse tipo de sujeito era o revolucionário de suvaco. Tá cheio de gente assim no “campus”. Aliás, em Brasília, especificamente no Palácio do Planalto, também.17/04/2007 12:01

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  14. [Eronildes] [eron.ms@terra.com.br] Parabéns, Ozaí! Seu texto está perfeito e ilustra bem o que acontece na Academia: a incoerência entre o discurso e a prática. O capital é o principal interesse de todos, liberais ou não. Não fosse assim, nossas universidades públicas não prejudicariam tanto seus alunos com essas greves praticamente anuais.17/04/2007 10:43

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