Pelo direito ao voto nulo

A democracia representativa pressupõe que o eleito seja legitimado pelos eleitores. O sistema político partidário assimila a diversificação dos votos distribuídos entre os partidos da direita, esquerda e centro e até admite um quantum de votos nulos e brancos.* Se estes superarem os votos válidos, não se instaura uma crise de confiança? Ainda que os partidos e políticos desconsiderem isto, teriam que refletir sobre o fato.

É visível a separação entre representantes e representados. Basta avaliar como os representantes atuam no micro-espaço da universidade pública. Tão logo termina a eleição, aprofunda-se o distanciamento: os eleitos se voltam cada vez mais às atividades burocráticas e à luta pela manutenção do poder e a possibilidade de alçar voos políticos mais altos; os eleitores retornam à rotina das suas atribuições e tarefas. Há, é claro, um grupo que se mantém próximo ao poder, pois há cargos a serem preenchidos. A eleição revela-se mero mecanismo de ocupação e distribuição de cargos. E isso ocorre em todos os âmbitos.

É o próprio sistema representativo, enquanto espaço de disputa para alocação de cargos e recursos compartilhados entre “os companheiros”, que precisa ser questionado. A política representativa esconde sob a pretensa universalidade, o “bem comum”, a ideia de “comunidade” etc., interesses particularistas e mesquinhos. É sob tal base que, em geral, se dão as alianças políticas. A superação dos limites inerentes à democracia representativa, porém, deve recusar a alternativa autoritária da sua aniquilação. Trata-se de desenvolver mecanismos de aperfeiçoamento da democracia participativa e direta.

Será correto continuar a legitimar tal sistema sem questionar os seus fundamentos? A esquerda, ainda que crítica, termina por se render aos meios e compartilhar dos mesmos interesses dos que jogam o jogo.** Ela insiste em trilhar caminhos já percorridos e concentra energias na disputa do Estado, ou seja, em também se apropriar dos recursos estatais disponíveis. Ela se adapta ao eleitoralismo e legitima a mesmice. O voto nulo é uma postura arriscada pois implica em abrir mão da possibilidade de ocupar posições no Estado. Talvez seja absurdo esperar que o partido político traia a vocação estatista, mas pode ser que a própria ideia de partido mereça ser questionada.

O voto nulo expressa diversas posturas políticas: da passividade à afirmação principista e inconseqüente. Ele não se vincula apenas à política consciente que aponte para uma perspectiva ideológica à esquerda. É preciso assumir que o voto nulo também representa o “analfabetismo político” – no sentido de Bertolt Brecht – e o moralismo dos que se imaginam acima da política, santos num mundo de pecadores. Porém, mesmo os “analfabetos políticos” têm o direito a se manifestarem. Se são apolíticos, é preciso afirmar que a política não se reduz à institucionalidade. Há ainda a passividade dos “indiferentes” e apolíticos, mas que aceitam de bom grado a alternativa autoritária. O individualismo mostra o descompromisso com a coletividade e a ideologia fundada em princípios abstratos, e quase religiosos, também cumpre uma função tranqüilizadora da mente que se sente culpada.

A estratégia eleitoral garante uma maior visibilidade, mas por que não ousar o diferente? Para os que não disputam cargos nem dependem da vitória do seu candidato, a opção pelo voto nulo é mais fácil. Porém, por que a esquerda teima em legitimar este sistema político partidário? É seu direito. A opção pelo voto nulo também é legítima. É inadmissível que se recuse esse direito ao eleitor. Afinal, também é democrático!

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Sugiro a leitura de Ensaio sobre a lucidez, de José Saramago (São Paulo: Companhia das Letras, 2004)
** Ver Voto Nulo! – Uma Outra Política é Possível!, Revista Espaço Acadêmico, nº 59, abril de 2006.

9 comentários sobre “Pelo direito ao voto nulo

  1. analisando as democracias mundiais frente ao refluxo generalizado das lutas anticapitalistas, penso que até que se inicie uma nova vaga de lutas com conteúdo revolucionário dificilmente veremos um golpe militar em breve. Assim, vejo o fascismo ressurgir cada vez mais por meio do modelo burguês democrático. Penso que se hoje ainda temos determinadas liberdades que o Estado ainda não retirou de expor concepções mais radicais (e isso é uma prova de que não estamos incomodando o suficiente) devemos aproveitá-las ao máximo. Diante disso vejo nessas eleições uma necessidade muito grande de afirmarmos o voto nulo como um pretexto para expor o papel do Estado, para fazer com que as pessoas percebam a diferença entre quem produz a vida material e quem decide e se apropria dela. Também é um pretexto para tentar mostrar outras formas possíveis de sociedade, baseada na solidariedade dos produtores livremente associados. Sei que é difícil trabalharmos essas questões em um panfleto e com os pouquíssimos recursos militantes que temos, mas se conseguirmos expor com clareza pelo menos uma dessas idéias e gerarmos questionamentos, já teremos feito um papel contra-ideológico importantíssimo pro nosso tamanho. Vejo o voto nulo como o voto com maior conteúdo de mudança nessas eleições, pois exige disposição das pessoas em teclar 00 e 00000 e confirmar duas vezes mesmo depois de a urna dizer que o número não existe.

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  2. Afinal, aonde se quer chegar com o voto nulo? À contestação da democracia representativa ou à recusa pelos políticos que não representam o povo? Que não há a representatividade, é certo, exceto pelo fato de que, tanto a maior parte dos políticos quanto a maior parte eleitores só se interessam pelos seus objetivos particulares durante quase todo o tempo. A maior parte dos eleitores, no entanto, procuram seus interesses próprios de forma honesta, o que não deixa de ser prejudicial a uma pretensa democracia direta. Para esta, é preciso de uma transformação da cultura política. Penso que um povo que se quer tenha discernimento político para escolher seus representantes, menos ainda o terá para assumir o poder e não ser representado. Ainda acredito no sistema representativo para uma transformação da nossa cultura política para uma democracia mais plena. Nesse sentido, é preciso recusar os maus políticos. E não somente. É preciso que os cidadãos sejam mais que eleitores. Não é só culpar os políticos ou o sistema. É preciso que os cidadãos exijam uma transformação da cultura política, se é que a querem de fato. O que impõe que os cidadãos só apareçam na política como eleitores? Suas cobranças e reivindicações são legítimas. O controle dos políticos é possível em algum nível. É claro que há política além do voto. Inclusive no sistema representativo. Penso, no entanto, que o problema a ser solucionado está além do voto nulo. Aliás, votar nulo mantém o cidadão na condição de mero eleitor, e talvez não dos melhores eleitores. Se se quer ser mais que isso, é preciso se conscientizar que o problema é bem maior.

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  3. Acredito que nós brasileiros estamos insatifeitos com esse modelo político já faz um bom tempo. Precisamos rever o modelo que nos obriga a pagar pela inércia e a irresponsabilidade das casas que formam toda a estrutura em todas as esferas de governo. Observemos que todos os candidatos que se arvoram a ganhar o voto do trabalhador partem de um modelo ridículo de propaganda eleitoral. Propaganda essa caríssima com o uso do espaço televisivo. E não “aparece” dinheiro para uma TV Educativa com mais espaço em horários ditos “nobres”. Esse modelo é falido, todos nós comentados a aqui e alhures, mas o que fazemos? Que movimentos poderíamos lançar junto às populações inclusive as mais longínquas desse país? E mais, porque não temos na escola básica a formação de lideranças voltadas para governar nosso país? Educação Política, Educação Tributária, Educação Financeira(aí está o endividamento absurdo dos aposentados, e de outros menos esclarecidos)E saibam, tudo em nome da cópia falida do consumismo que por aqui reina…Rose Palmeira, professora

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  4. Caro Ozaí, É interessante o quanto uma postura, niilista, descompromissada, sem interesse direto, sem buscar o benefício próprio (lembrando que aquilo que é benéfico para um segmento da população pode causar malefícios à outro)gera ojeriza, diria até medo, nos políticos “profissionais” e nos militantes da esquerda e da direita (não lembro ao certo que autor que trabalha com essa idéia, acho que é o Bourdieu). Mesmo votando nulo, acredito e participo da democracia, afinal a história mostra que, se por um lado, sua crise abriu espaços para movimentos fascistas, por outro, também permitiu o surgimento de uma democracia mais humana, o welfare state. Criticamos contantemente os governos ditatoriais, governados por oligarquias, mas não podemos deixar de mostrar que essa democracia atual esconde uma ditadura, tanto econômica, quanto política, esconde oligarquias antigas e nascentes. Não vamos pensar que se candidata quem quer (só se for “laranja”). O partido convida o candidato. Em algumas coligações já se sabe até quem vai se eleger, mesmo antes do pleito. Onde está a democracia disto?Enquanto não se sentirem ameaçados os “políticos profissionais” não vão representar dignamente os “josés” e “marias”, mas sim os interres daqueles que ajudaram financeiramente sua campanha. Daí surge alguém e diz: “Vamos eleger representantes honestos”; ora estamos cansados de saber que eles vão “entrar no sistema”, é como um funcionário que vira patrão, não adianta esperar que se comporte como funcionário. Um colega acima disse que o voto nulo é irracional, e o custo anual de um vereador em Maringá (aproximadamente 700 mil por ano) é racional? Será que os vereadores vão se reunir e cortar gastos, fazer uma lei para diminuir salários?Eu não voto nulo pensando em mudar o mundo, voto nulo porque não quero compactuar com isto. É preciso mudança, e, na atual conjuntura, quando o assistencialismo arrecada caminhões de votos, não vejo saída. Como você Ozaí, também acredito que a idéia de partido deve ser reformulada, afinal na maioria dos casos seu programa e postura não determinam, ou mesmo influenciam, as opções do candidato eleito.Abs, do outsider!!!

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  5. Grande Antonio,A ilustração deste post vale todo um comentário: “Existe Política Além do Voto”.A participação política do cidadão não se esgota em votar, como querem nos fazer crer .É certo que o direito ao voto foi uma reconquista democrática após os 20 anos de chumbo da ditadura militar.As classes dominantes, porém, conseguiram esvaziar essa conquista, sugando sua seiva: hoje, o que temos é um fruto seco, oco. Não é o fruto que foi reconquistado. Estamos numa democracia formal e jurídica, mas não real e econômica.E a participação política através de movimentos populares, a atividade política através de organizações extra-partidárias, a mobilização social permanente, são muito mais importantes e consequentes que um voto num jogo de cartas marcadas. Excelente a imagem que você escolheu para ilustrar o “post”.Devemos sempre lembrar que as instituições políticas, jurídicas, policiais, educacionais, etc, são INSTITUIÇÕES IDEOLÓGICAS, através das quais a classe dominante obtém consenso para sua dominação, cuja função precípua é fazer as camadas populares pensarem que os valores e interesses da classe dominante são seus também. E esconder a exclusão social e a dominação econômica de classe.Esse papo de “sistema político representativo”, “representatividade eleitoral”, “votar no “menos pior” para que o “mais pior” não seja seja eleito”, “votar nulo é abrir mão de escolher sua representatividade” é papo ideológico. Muitos acreditam sinceramente nisso, pois não têm condições existenciais ou intelectuais de libertarem-se do jugo ideológico: estão alienados.E crêem, às vezes sinceramente, às vezes com interesses excusos, que esta interpretação da realidade política é “determinismo marxista”, “aplicação mecânica de conceitos marxistas”, confundindo método investigativo com conceito teórico e fazendo o jogo das classes privilegiadas.Não adianta escolher o melhor, votar só nos ilibados e probos, formar um Legislativo apenas composto de capazes e competentes: mesmo que isso ocorresse, tal Legislativo deveria seguir o jogo político estabelecido pela classe dominante,ou então haveria um golpe de estado, coisa que já aconteceu nos idos de 1964 e que já conhecemos bem… Essa “democracia” esvaziada, formal, decorativa que está aí interessa apenas à classe dominante. É a democracia dela, uma democracia privatizada. Basta olharmos a realidade, basta furarmos o bloqueio ideológico ao qual estamos condicionados pelas instituições políticas, jurídicas, educacionais, etc para vermos que não há “espaços para ocuparmos” através das eleições. Os espaços políticos somente podem ser ocupados através de moblizações e organizações que estão fora da política legal e formal. “Existe Política Além do Voto”.Na “democracia” exclusivista dos privilegiados a eles interessa a maquiagem de que se trata de uma democracia real e sem excluídos. Nesse jogo de aparências, a figura da eleição “livre e democrática” é mais uma peça ideológica.Onde houver a privatização dos bens públicos, onde houver a propriedade privada dos lucros da atividade econômica e a socialização dos prejuízos, onde o Estado de Bem Estar Social for sucateado e encarado como despesa do Estado a ser eliminada, onde o mercado for livre e desregulamentado e tido como entidade imune à ação transformadora, não haverá democracia. Com ou sem eleições. Isso não é escapismo nem ilusão: ilusão é acreditar nessas eleições pseudo-democráticas. Ilusão ou interesse próprio. E o voto nulo, além de válido politicamente, pode ser eficiente – ao menos como protesto e mostra de consciência política.A eleição é mais uma etapa do jogo. Maquiagem da Democracia. Estou fora. Voto nulo.Abraço a todos.

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  6. Para mim, anular o voto representa a minha insatisfação perante o sistema político. Não é uma recusa da possibilidade de escolha permitida num sistema democrática, mas uma demonstração da insatisfação da não disposição de candidatos onde posso creditar meu voto.Sendo assim, votar nulo não deve representar uma eleição de contestadores, ou solucionar as atrocidades ideológicas na política. O sujeito pode ainda ser individualista e nem conhecer as questões políticas que o influenciam, considerar que o sistema político eleitoral não lhe faz sentido, mas mesmo assim, já que vive num regime democrático, deve ter o direito de demonstrar a sua insatisfação e votar nulo.

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  7. “Acredito que numa democracia, apesar de nos ser garantido esse voto anacrônico mesmo na nossa urna eletrõnica, há formas mais inteligentes de interferir na vida política do país, de não se contentar com a simples negação da opção, como por exemplo participar ativamente da criação de opções ou mesmo vir a ser opção de voto. Sem mais para crescentar a este debate já ultrapassado no meu íntimo, mais sempre vivo na discussão do conceito de democracia, termino dizendo que gostaria de ver novos argumentos sustentassem a viabilidade da tese da legitimidade do voto nulo…”

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  8. O artigo pretende justificar o voto nulo, mas ele confunde varios elementos do sistema politico representativo e do sistema eleitoral.Existem dezenas de candidatos, alguns deles correspondendo ao perfil desenhado neste artigo: auto-centrado, fazendo da politica um balcao de negocios, etc.Ao recusar o seu voto para qualquer candidato, anulando, portanto, sua possibilidade de escolha, o eleitor partidario do voto nulo não está negando legitimidade a esse tipo de candidato, mas sim concorrendo para a sua eleição ao eximir-se de escolher um candidato melhor (ou menos pior).Não se deve ter ilusoes “democratistas” e ideológicas: o sistema político brasileiro é o da democracia representativa, o que significa que necessariamente teremos de ser representados por alguem, ou disputar nós mesmos as eleições para tentar ser eleito com base numa plataforma que não reproduza os vícios atualmente existentes. Sabemos muito bem que isso não vai mudar da noite para o dia e que a ÚNICA forma de melhorar nossa democracia representativa é contribuir para a eleição de melhores representantes. Não se trata de legitimidade ou disputar poder, se trata simplesmente de afastar os maus políticos e contribuir para a eleição dos menos ruins.O voto nulo INDUBITAVELMENTE nos afasta desse objetivo.Logo se trata de uma NÂO SOLUÇÃO, de um escapismo, de um protesto absolutamente inutil, ineficaz e, no limite, irracional, pois ele não vai mudar nada, a não ser para pior.Uma disussão principista como esta tem vários equívocos, inclusive quanto ao sistema eleitoral, mas qualquer que seja este, o voto nulo simplesmente representa a negação da escolha, a barreira irracional a um melhor sistema democrático, uma ajuda aos corruptos e corruptores. Logo, deve ser condenado, não por ser ilegitimo, mas por ser ineficiente e niilista.

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