A Servidão Moderna

“Que época terrível esta, onde idiotas dirigem cegos.” (William Shakespeare)

Domingo passado rompi o compromisso de não ligar o computador. E trabalhei porque a semana estava repleta de coisas a fazer: aulas na UEM (que pressupõe leituras, preparação, etc.), participação no curso Fé e Política[1] da Escola de Cultura, Fé e Política – Associação de Reflexão e Ação Social (ARAS), e no curso organizado pelo Prof. Dr. Raymundo de Lima para as professoras pedagogas que participam do PDE (Programa de Desenvolvimento Educacional).[2] O esforço valeu a pena. Conheci pessoas maravilhosas e foram experiências muito gratificantes.

Foi ao preparar a minha contribuição para estes eventos que encontrei um vídeo impactante: De la Servitude Moderne (França-Colômbia, 2009, 52min – Direção: Jean-François Brient). A Internet está repleta de centenas de vídeos. O desafio é encontrar algo que mereça o tempo dedicado a assisti-los – afinal a vida é finita e, portanto, o tempo é o que temos de mais precioso. A propósito, será que paramos para refletir sobre o quanto perdemos em nossas vidas com coisas fúteis e superficiais?!

De la Servitude Moderne (Da servidão moderna) é um filme cujas imagens e linguagem expõem os paradoxos, dilemas e as chagas da sociedade. Enquanto indivíduos conscientes e críticos da realidade social que nos circunda é impossível passar incólume diante do que vemos e ouvimos. Cada imagem, cada frase, nos leva à reflexão sobre o mundo em que vivemos e nossa atitude diante dele.

De la Servitude Moderne é um documentário e também um livro, ambos produzidos de maneira completamente independente e distribuídos gratuitamente. A atitude de Jean-François Brient e Victor León Fuentes é também um desafio à concepção predominante sobre a propriedade intelectual. O texto foi escrito na Jamaica em outubro de 2007 e o documentário foi finalizado na Colômbia em maio de 2009. Foi elaborado a partir de imagens desviadas, essencialmente oriundas de filmes de ficção e de documentários.[3]

As referências que inspiraram a obra, e mais propriamente a vida dos que a fizeram, são explícitas: Diógenes de Sinope, Etienne de La Boétie[4], Karl Marx e Guy Debord. Da mesma forma, os autores explicitam que:

“O objetivo principal deste filme é de por em dia a condição do escravo moderno dentro do sistema totalitário mercante e de evidenciar as formas de mistificação que ocultam esta condição subserviente. Ele foi feito com o único objetivo de atacar de frente a organização dominante do mundo.”

E o que é a servidão moderna?

“A servidão moderna é uma escravidão voluntária, consentida pela multidão de escravos que se arrastam pela face da terra. Eles mesmos compram as mercadorias que os escravizam cada vez mais. Eles mesmos procuram um trabalho cada vez mais alienante que lhes é dado, se demonstram estar suficientemente domados. Eles mesmos escolhem os mestres a quem deverão servir. Para que esta tragédia absurda possa ter lugar, foi necessário tirar desta classe a consciência de sua exploração e de sua alienação. Aí está a estranha modernidade da nossa época. Contrariamente aos escravos da antiguidade, aos servos da Idade média e aos operários das primeiras revoluções industriais, estamos hoje em dia frente a uma classe totalmente escravizada, só que não sabe, ou melhor, não quer saber. Eles ignoram o que deveria ser a única e legítima reação dos explorados. Aceitam sem discutir a vida lamentável que se planejou para eles. A renúncia e a resignação são a fonte de sua desgraça.”[5]

Ainda que discordemos da ideologia e posições políticas explicitadas no filme, vale a pena assisti-lo. No mínimo, compreenderemos melhor a nossa sociedade!


[1] O tema do módulo tratado nesta fase é: A questão do trabalho no sistema capitalista.

[2] Foram duas turmas diferentes e o tema que discutimos tratava da seguinte questão: A ação docente como atividade política na sociedade.

[3] O texto e o filme estão disponíveis em http://www.delaservitudemoderne.org/portugues1.html

[4] Ver: Etienne De La Boétie. Discurso da Servidão Voluntária. Tradução: Laymert Garcia dos Santos. Comentários: Claude Lefort. Pierre Clastres e Marilena Chauí. Editora Brasiliense. São Paulo, 1982.

[5] Texto na íntegra disponível em http://www.delaservitudemoderne.org/texto-po.html.

33 comentários sobre “A Servidão Moderna

  1. O termo “servidão moderna” nasceu em 2007, com o livro de nome “Da servidão moderna”, o qual foi adaptado para um documentário em 2009, homônimo. O termo baseia-se na ideia de que a servidão não terminou, apenas evoluiu. O principal objetivo das obras é nos mostrar como a servidão do mundo antigo evoluiu aos dias de hoje como uma forma de servidão voluntária motivada pelo sistema capitalista e o vício do consumo.
    Em tal comparação, ignora-se completamente um fator fundamental para a definição da condição de servidão: o direito de escolha do ser humano. Afirma-se que em nossa condição de “servos modernos”, fomos escravizados por nossos impulsos de consumo. Tal ideia mostra-se tão impalpável quanto uma frase pode defini-la: apenas consumimos aquilo que desejamos. Portanto, pode-se afirmar que tais “impulsos” partem de nossos desejos e somos nós os únicos responsáveis por suas consequências.
    Afirma-se que o ser humano vem trabalhando de forma voluntária para a construção deste mundo, e que por gastar a recompensa de seu esforço em produtos que não se fazem necessários, isto faz dele um escravo. Comparemos, então, este “escravo moderno” ao “escravo clássico”, para que, assim, testemos a validade do primeiro termo.
    Comecemos pelo fato do trabalho escravo clássico não ser uma opção. Qualquer tentativa de negar sua condição de escravo era reprimida com fortes punições. Penas de morte e castigos físicos eram mais do que comuns. Agora, dizer que o trabalho é necessário para sobrevivência não é mentira, porém, as consequências pela negligência – ou mesmo negação – do trabalho do “escravo moderno” são incomparáveis ao que o “escravo clássico” sofria.
    A ascensão social é uma possibilidade plenamente plausível para o “escravo moderno”. O escravo clássico não tinha qualquer perspectiva de vida, além de uma arriscada fuga ou um trabalho vitalício e de recompensa nula. Este, aliás, é outro fator que diferencia as duas escravidões. Os “escravos modernos” são recebedores daquilo que chamamos de “salários”, isto é, quantias de dinheiro que funcionam como uma forma de recompensa pelo trabalho ao qual se condicionaram.
    No documentário é dito, também, que a alienação social leva o “escravo moderno” a gastar seu dinheiro com aquilo que não é necessário. Celulares modernos, carros bonitos, casas maiores, utensílios de utilidade duvidosa. Como refutar o irrefutável? O conceito de “necessidade” é extremamente relativo, sequer deveria ser usado como argumento. Cada ser humano vê “necessidade” naquilo que quer ver, e é seu direito gastar o “salário” conquistado por seu mérito naquilo que considera necessário, ou mesmo naquilo que considera desnecessário, porém, é objeto de seu desejo. Mais uma vez, retornemos a um simples fato social: as consequências de seus desejos não podem recair a ninguém, que não a você.
    As duas “escravidões” se diferenciam pelo grau de liberdade que oferecem. A “escravidão moderna” é uma anti-escravidão. Nela, o escravo pode escolher quando, como e onde trabalhar. Esta estranha escravidão lhe recompensa por seu trabalho, e ainda lhe permite ascensão social. Nesta escravidão, não existe morte, não existe dor. A desculpa dos “impulsos consumistas” apenas confirma a liberdade oferecida por esta anti-escravidão. Não existe escravo mais livre do que aquele cujo dono é ele mesmo.

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  2. Eis o paradoxo: paises que enveredarm pelo sistema socialista de governo depararam-se com a questão do preço das coisas… quem esta apto realmente a valorar os bens de consumo como de produção é o mercado… o sistema socialista nunca conseguiu acabar com a indigencia social sem um sistema capitalista a lhe financiar,,, paises que aplicaram o capitalismo selvagem conseguiram em poucas decadas retirar suas populações da miseria e alça-las a economia de mercado e produção de P&D com grande exito… reclama e inveja-se o sitema capitalista apenas aqueles que enveredaram pelo socialismo utopico que promete e NUNCA cumpre… o pior esta vindo por ai… é a economia facista baseada na sintese do comunismo com o capitalismo, gerando um estado TOTALITARIO onde somente uma NOMENKLATURA burocratica viverá abastada…. isso sim, será escravidão ETERNA…

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  3. Bem, assisti o vídeo e ele traz certamente uma proposta bastante crítica sobre a realidade e a alienação em que nos situamos, pelo qual não passamos de meras marionetes de um sistema regido pelo capitalismo/consumismo. Ainda não possuo muitos conhecimentos e pretendo expandi-los com o tempo. Hoje estava lendo uns artigos e deparei-me com a palavra ILLUMINATIS, queria saber de outras opiniões ( de pessoas mais bem instruidas como o Sr.º) se isso não passa de mais uma babozeira da internet ou se de certo modo possui um embasamento correto. Agradeço pela Atenção ! 🙂

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    • Lucas,

      obrigado.
      Assisti a este filme faz muito tempo. Do que lembro, é possível fazer uma análise política e sociológica do mesmo. Precisaria assistir novamente para opinar.
      Não li o livro.

      abraços e tudo de bom,

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  4. Olá prof.
    Gostei muito da sua fala no nosso curso do PDE, é muito raro professores que tenham a oportunidade de partilhar conhecimentos que parecem tão distantes da nossa realidade, e que sem que percebam ou mesmo querendo repassam aos outros o verdadeiro sentido da Alienação.Realmente seria interessante que pudessemos deixar todo capitalismo que esta impregnado em nosso mais intímo ser e olhassemos com outros olhas os que estão fora do sistema.Nós ainda vamos e me incluo neste, de ter a chance de reverter tal processo, pois faço parte deste sistema onde não medimos esforços para TER sempre mais e esquecemos do SER. E pesquisar também faz parte de todo ser humano para pelo menos amenizar esta sociedade, e se utilizarmos está ferramenta tão atual que nos tras uma gama de conhecimento de maneira correta, poderá fazer com que reapassemos aos outros algo que melhore essa alienação tão deslumbrante na sociedade capitalista.
    Abraços
    Tereza
    Peabiru – PR

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  5. Concordo com o argumento de que a Sociedade moderna é escravizante e de que o indivíduo acabou por fazer parte do teatro de fantoches, ou por falta de vontade de pensar, ou por conivência, ou ainda por desconhecimento. De qualquer forma, entendo a liberdade individual como um bem dos mais importantes, que deve ser preservado. Portanto, como o entendimento de um valor difere para cada elemento, é difícil inferirmos sobre o bom/mal nas micro-escalas, isto é, nas escalas do indivíduo. Assim, o chamado esclarecido pode apontar o caminho, criar premissas, gritar, protestar, fazer arte… qualquer coisa que chame a atenção ao seu ponto de vista, mas jamais poderá obrigar outros a seguirem-no. Se o fizer, será mais um proselitista com a incrível facilidade de tornar-se um déspota.
    É sempre bom ler-te 🙂
    Sdç Antonio.

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    • Camila,

      muito obrigado.
      Concordo com a sua defesa da liberdade individual, mas o dilema é compatibilizar esta com a coletividade, a vida em comunidade. Historicamente, a liberdade individual em si degenerou em individualismo possessivo; e as tentativas de construir sociedades coletivistas terminaram por anular a liberdade dos indivíduos. O desafio é romper este círculo, pois a liberdade só será plena em condições diferentes das que vivemos atualmente. É o que penso!

      abraços e tudo de bom,

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  6. Estimado Doutor

    Cumprimentos

    Fico imensamente feliz com a provocação sempre salutar que fazes e com isso incitando o debate. Graças a eletronica e ao computador temos em muito nossas vidas facilitadas. O problema realmente esta com os excluídos de tudo. Os Capitalistas para com esses estão “se lixando”. A sociedade global de consumo, já tem milhões de sem-consumo. Huxley, Orwel,Dick e provavelmente outros já haviam previsto as dicotomias com que estamos a nos defrontar. Fica a dúvida se a guerra já esta perdida ou se ainda temos algum chance de não ser-mos totalmente derrotados! Talvez essa incerteza continue a mover nossa esperança por uma sociedade alternativa.
    Um abraço
    Pedro
    Caxias do Sul – RS

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  7. brigada por mim enviar estes documentos tão importante para. a cada documentario eu amplio o meu conhecimento aprendi á aprender a cada noticia, sendo uma construção de aprendizado de forma prazerosa, pois dificilmente encontramos pessoas `despostas a esclarecer com a verdade e colocando o seu ponto de vista a respeito do capitalismo, dessa forma agradeço-lhe por compatilha com seus leitores a cada publicação sua.

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    • Cara Maria,

      meu sincero muito obrigado. Suas palavras estimulam e fortalecem o nosso trabalho. Também aprendo, pois esta relação é dialética: o educador se educa ao educar; e, todos nós, educamos e somos educados simultaneamente.

      abraços e tudo de bom,

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  8. Professor Ozaí,

    provavelmente, todos nós morreremos antes de ver o sol brilhar. Que saibamos ao menos reconhecer todas as frustrações geradas pelas tramas sociais que arrastam a humanidade por caminhos sinuosos. Se ao menos algumas vozes relutantes continuarem a demonstrar inquietação diante da bestialidade de determinadas formas de sociabilidade, será possível se despedir desta vida de cabeça erguida.
    Um grande abraço! Jonas Jorge da Silva

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    • Jonas,

      muito obrigado.
      Bem, espero morrer de dia, vendo o sol brilhar! rsrs
      De qualquer forma, é fundamental, como vc afirma, termos a consciência dos dilemas, frustrações e inquietações que envolvem o humano, demasiadamente humano.

      abraços e tudo de bom,

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  9. Liberdade na verdade significa liberdade para errar. Já dizia Ludwig von Mises.
    O único sistema que permite isso, liberdade de escolha, é o Capitalismo. A não ser que surja um novo. Socialismo só mostrou horrores até hoje, isso é fato consumado.
    Agora o sistema capitalista é feito por indivíduos, não é o mundo que mudou. É o ser humano que a medida que o tempo passa continua o mesmo, desonesto, egoísta e consumista, como sempre foi. Hoje só há mais opções e mais tecnologia para facilitar as coisas. Lembrem-se que antigamente derrubar florestas era desbravar novas fronteiras, as pessoas que faziam isto, eram heróis da modernidade. Quem garante que muita coisa que fazemos hoje não será negativo no futuro e nem percebemos? Isso é um ponto. A alienação é fruto do sistema econômico ou fruto da desinformação deliberada promovida pela grande mídia? Onde fica a nossa culpa nisso tudo? Há muitas pessoas que tem acesso a informação de qualidade (minoria em relação ao todo) mas não a passam para frente. Junta-se isso a grande maioria da população que não tem acesso a nada de qualidade, educação, saúde, segurança, INFORMAÇÃO DO QUE SE PASSA AO SEU REDOR. Pegando o exemplo da rede globo no Brasil, que detem mais de 90% da cobertura nacional e chega a praticamente todos os lares, todo dia. Independente do sistema econômico, o poder de influência da rede globo é gigantesco. Eu me arrisco a dizer que ela é mais culpada que qualquer outra organização no Brasil pela alienação brasileira. Epidemia de gripe porcina!!! ONDE!!???

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  10. a associaçao da dança dos derviches com a alienaçao moderna parece-me no minimo suspeita. o que tem a ver a busca de espiritualidade de uma crença milenar com a sociedade de consumo e nossas necessidades artificiais?
    essa escolha – e toda escolha é sintomatica – remete aos conceitos e preconceitos analisados por Edward Saïd em O orientalismo – o oriente fabricado pelo imaginario ocidental nos ensina mais sobre o proprio ocidente, sua arrogância e sua ainda atual dominaçao colonialista sobre o resto do mundo, do que sobre esses mundos retratados.

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  11. Muito bom Ozaí. Ao assistir esse vídeo percebemos melhor o mundo que vivemos, principalmente se considerar-mos a questão da modernidade. Aliás o Zygmunt Bauman tem um trabalho interessantíssimo sobre a modernidade líquida, um sistema social marcado pela provisoriedade onde tudo que é sólido se torna líquido, instável, um terreno movediço no qual movimentamos às vezes sem nos darmos conta do que fazemos. A questão da servidão vai de encontro com uma das linhas de pesquisa onde faço meu mestrado e quanto mais apronfudamos o assunto mais essa questão se torna evidente. Realmente isso precisa ser repassado numa tentativa de inverter o quadro psíquico de idiotização coletiva que o sistema nos impõe. Nesses momentos me vem à lembrança a música do Zé Ramalho ” vida de gado, povo marcado, povo feliz”.
    Um grande abraço,
    Silvânio Paulo de Barcelos

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  12. Prezado Ozai, um excelente documentário que vale (muito) a pena ser divulgado, debatido e refletido. Uma boa e densa construção de nossa “hipermodernidade” e seus escravos atados à um consumismo desenfreado e autofágico. Um cordial abraço, Wellington F. Menezes.

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  13. Muito bom o vídeo, mas um tanto radical na sua suposta solução. Talvez, a melhor guerra seja iniciada dentro de casa, fechando os olhos à televisão, abdicando a hábitos consumistas e disseminando uma visão crítica aos “cegos”.
    Creio que as insurgências violentas ao poder de opressão são vistas com maus olhos pela sociedade em geral.

    Abraço Ozaí. Perdão pela inocência de meu comentário, mas resolvi passar meu ponto de vista.

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    • Rafael,

      muito obrigado.
      Ser radical é buscar a raiz das coisas. Talvez um dos maiores problemas atuais é que tememos fazer este exercício e ficamos na aparência das coisas. Talvez sejamos acomodados, conformados demais.

      Porém, vc não precisa desculpar por comentar. Pelo contrário, sua opinião é fundamental e tão importante quanto a dos demais e, inclusive, do autor do texto.

      Abraços e tudo de bom,

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  14. Muito bom Ozai! Filme obrigatório pra a discusão de meio ambiente e educação ambiental. Tem cena do The Corporation e do koyaniquatsi, que já se tornaram clássicas. Com certeza iremos divulgar para outras pessoas interessadas na construção na saida da escravidão moderna do neo liberalismo.

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