Por que a oposição às cotas raciais nas universidades?

Assisti ao documentário Raça Humana, da TV Câmara.* Revela os bastidores da discussão sobre as cotas raciais na Universidade de Brasília e apresenta os argumentos a favor e contrários.

A rejeição das cotas raciais faz parte da democracia. Não obstante, o discurso dos discentes e docentes faz pensar: por que tamanha oposição e agressividade? Será possível compreender esta postura apenas pelos argumentos ou é inerente à natureza da universidade? A minha hipótese é que a contenda sobre as cotas expressa algo mais profundo do que ser contra ou a favor. É o próprio caráter da universidade e do seu papel na sociedade que se encontra sob questionamento.

A universidade é, por excelência, o espaço das elites, expressão da influência desta no âmbito da sociedade – e isso é particularmente visível nos cursos de elite, os mais concorridos. A universidade é pública. Porém, da mesma forma que o Estado universaliza a cidadania através do reconhecimento dos direitos políticos, igualiza a todos na universalidade da lei e na categoria cidadão/cidadã e, assim, coloca um véu sobre a realidade social desigual, a universidade pública escamoteia as desigualdades de oportunidades fundadas em diferenças raciais, sociais e culturais. Se a universidade é para todos e, em tese, qualquer indivíduo, desde que se esforce, pode ingressar nela, ela o é no discurso, na letra da lei, no mito de que o vestibular é um critério justo para definir quem entra. A universidade é, por sua natureza social, excludente. As exceções dos menos favorecidos social e economicamente que conquistam o direito de freqüentá-la, e até de seguir carreira e se tornarem professores universitários e doutores, apenas confirmam a regra.

A universidade é intrinsecamente elitista. Não é por acaso que a resistência às cotas raciais aumenta na medida em que a escolaridade e o nível de renda são maiores. Isto tem uma relação direta com a oposição tenaz em cursos cujo perfil discente demonstra nível de renda maior (como no Direito).

Escolaridade e nível de renda caminham juntos. A classe média e os que se encontram acima, os mais aquinhoados financeiramente, são os que ocupam em sua maioria as vagas na universidade. No fundo, até mesmo pelo investimento que fazem na preparação dos seus filhos, vêem a universidade como sua. As cotas lhes parecem um perigoso artifício para tirar um direito adquirido pela posição que ocupam na sociedade. Até admitem que os pobres concorram, mas não reconhecem que o ponto de partida destes é inferior. No limite, acabam culpando o pobre pela situação em que se encontra.

Na universidade prevalece um tipo de saber pretensamente científico e racional, branco, eurocêntrico e excludente da cultura e saber populares. Eis os alicerces da nossa universidade, os quais foram sedimentados pela colonização que, seguindo a modernidade ocidental, impôs um padrão dominante erigido como novo dogma substituto à teologia. Em outras palavras, na universidade assimilamos acriticamente o modelo racional científico de saber, oficial e pretensamente neutro, legitimado em si mesmo. São os fundamentos elitistas desse saber e cultura oficiais, reservados aos que, desde a infância, trilham os caminhos e são preparados para incorporá-las: pois, suas famílias têm condições econômicas e culturais para tanto, isto é, são depositários do “capital social” e “capital cultural”. O vestibular, portanto, termina por escolher os escolhidos social e economicamente, isto é, os mais preparados pelas próprias condições de vida para passar pelo funil.

Raça Humana é um documentário que contribui para esta reflexão. Vale a pena assistir!


* Com direção e roteiro de Dulce Queiroz e duração de 42 minutos, Raça Humana foi vencedor da categoria Documentário, na 32ª edição do Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos, em 2010. Para mais informações e download do vídeo em alta resolução, acesse: http://www.camara.gov.br/internet/tvcamara/?lnk=RACA-HUMANA&selecao=MAT&materia=100406&programa=138&velocidade=100K

 

14 comentários sobre “Por que a oposição às cotas raciais nas universidades?

  1. Olá Ozaí!

    Vou retomar o seu comentário que diz que a Universidade pública brasileira é elitista. Concordo plenamente, mas acho que devemos entender a real raiz dessa elitização:

    Ela é elitista não por que está recheada de brancos endinheirados (até por que esses preferem pagar faculdades particulares que garantam um bom período de festas antes de assumir as empresas do papai) mas por que impede que o jovem de 18 a 24 anos faça um curso Superior. Neste critério, a média brasileira ainda é a menor da América Latina.

    E o jovem aqui citado é o jovem branco, negro, mestiço, etc. Ou seja, há uma verdadeira necessidade em se criar vagas públicas para que a média de jovens matriculados suba até os 30% (para nos livrar da vexatória posição, e garantir financiamentos, créditos, etc., etc.).

    Acho que aqui começa o problema. O problema não da raça X ou Y (genótipo ou fenótipo, como queiram os biologistas de plantão) mas em como matricular uma imensidão de jovens em instituições que não se expandem, não querem expandir e tampouco há interesse social em expansão do ensino público superior (pelo menos no atual molde dele, que é justamente o mole racionalista, elitizador, e que justamente garante sua qualidade em um país sem tradição em ensino superior de massa).

    Vemos então que, se de um lado a Universidade pública se digladia com cotas sociais/raciais (ambas absurdas, por sinal), o governo PAGA com recursos públicos a vaga para estudantes em escolas privadas a partir do PROUNI. Sem falar na proliferação do ensino a distância, que, com ou sem qualidade, público ou privado, está aí a maquiar as estatísticas.

    Desta forma, enquanto estamos gastando nossa sapiência debatendo se existe ou não raça, se existe ou não racismo, muitos “empresários da educação” (alguns com títulos de Doutor comprado) estão gargalhando com os lucros que cada vez são maiores. E a inclusão também está sendo feita, pois, sendo paga (pelo governo, ou pelo FIES) a vaga pode ser branca, negra, cor-de-rosa, azul e até mesmo cor-de-burro-quando-foge.

    Desta forma, por que, ao invés desse debate sobre cotas, a Universidade não debate sua real expansão? Será que a Universidade quer o dobro ou o triplo de alunos em suas fronteiras? Será que os professores das instituições públicas (que são cada vez menos professores e se tornam “pesquisadores”) topariam corrigir 200, 300 provas a mais por bimestre? Será que os professores topariam a contratação de mais professores (dobrando ou triplicando os Departamentos) e correndo assim o risco de ver o seu inimigo teórico, ou seu ex-aluno antipático se transformar em colega de profissão?

    Realmente, o debate está aberto!

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  2. Prezado Professor Ozaí,

    Estamos agora em pleno século XXI e com mapeamento do nosso código genético decifrado. A ciência nos provou que na verdade não há raças na espécie humana, mas apenas pequenas variações genéticas para que o homem possa se adaptar melhor no meio em que vive. Não é mais pertinente o preconceito racial, já que raças não existem. Será que essa insensatez vai ser alimentada por isso uma raça que na verdade nem existe: os negros? Isso nos faz lembrar a África do Sul de outrora, em que o “apartheid”, ou seja, a segregação racial era enorme. Será que aqui no Brasil esse “apartheid” não vem maquiado por leis aparentemente benéficas?

    Os negros sem dúvida sofreram grandes injustiças no passado, mas o passado não pode ser refletido no presente e nem no futuro. Se ainda há o preconceito, a sociedade tem que ser educada através de propagandas e de punições severas quando for detectado atitudes ou atos de discriminação. Faz-se necessário à devida conscientização do povo que a própria ciência já nos mostra e derruba a teoria arcaica das raças na espécie humana. Portanto, não existe a raça negra, branca, amarela nem vermelha. O que existe são pequenas variações que são aproveitadas por mentes vesanas para estimular o preconceito étnico. As diferenças étnicas, de crença, religião e cultura, devem ser respeitadas e aceitas em sua essência desde que essas não transcendam os direitos humanos. A peculiaridade de cada povo deve ser entendida e respeitada para que possamos continuar com a riqueza das múltiplas culturas existentes em nosso país e, principalmente, para que o preconceito racial chegue ao fim. Em um país miscigenado como o nosso, temos que entender melhor a explicação da ciência: todos nós temos a mesma essência física nos diferenciamos apenas em questões tênues e inconcebíveis para que haja qualquer discriminação.

    http://mudancaedivergencia.blogspot.com/2010/11/racismo-no-brasil.html
    Saudações,

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  3. A escola pública de qualquer nível deve estar voltada para a formação profissional dos menos favorecidos. Os ricos que paguem a escola particular.

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  4. Inclusive acho o fim da picada que pessoa que tem dinheiro para pagar a universidade particular possa estuda em universidade pública. Se isso não pode ser impedido, então que o rico reembolse a universidade após o término do curso.

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  5. Se a universidade pública deve ser para todos, então basta que o poder público que administra a universidade pública afaste as pessoas que de qualquer forma obstruem a entrada de todos. Não tem segredo.

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  6. É ótimo discutir aberrações, e necessário, às vezes. O fato é: quem quer e se dedica ao estudo, entra na Universidade. Seja negro, branco, rico, pobre, asiático, indígena, classe média etc. Tentar CAMUFLAR a realidade a qualquer preço, leva a criar COTAS RACIAIS. Por que todos têm de ser Universitários? Se todos os filhos de jogadores famosos não se assemelham a seus pais. Porque os filhos dos gênios, não são gênios. Cada um com a sua possibilidades ou vontades. Por outro lado, existem cientistas, advogados, médicos, escritores e políticos negros, advindos de famílias pobres e de pais analfabetos. Balela essa de cotas para negros, e as outras raças pobres? Precisamos é de uma total mudança no ensino fundamental. Com professores respeitados e ganhando igual aos Vereadores e outros políticos, inclusive os semi-analfabetos no português e totalmente na política de seu cargo eletivo. Infelizmente há muito o que mudar neste nosso Brasil. Além de existirem inúmeras profissões técnicas necessitando de mão de obra especializada, em todos os setores, nada é solucionado em definitivo. Nunca na história deste país houve um excutivo ou grupo de legisladores que realmente quisessem solucionar os impasses da educação brasileira, tampouco respeitar o profissional mais importante para qualquer país –
    O PROFESSOR.

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  7. A pergunta e os argumentos estao fundamentalmente errados, invertidos, e me surpreenda que isso nao transparecao em nenhum momento.
    A pergunta nao deve ser por que a oposicao as cotas raciais, e sim POR QUE cotas raciais?
    Se a universidade é um espaco de reflexao aberto aos questionamentos, e se ele nao convivia com cotas raciais durante a maior parte de sua historia, seria natural que os favoraveis as cotas raciais é que deveriam responder e justiricar por que cotas raciais, nao os que sao contrarios a elas, que representam um vies racialista, racista, na verdade, inaceitaval num espaco que considera nao existirem racas humanas.
    Por que se deve introduzir o apartheid na universidade? Eis a pergunta correta.
    Paulo Roberto de Almeida

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    • Respondendo a sua questão: Por que cotas raciais?
      Eu digo que é para o estabelecimento de um debate sobre o racismo velado que existe no Brasil. Isto ocorre de modo tão sutil e está de tal forma entranhado na sociedade que somente quem o sofre sabe. Não se trata de genoma, trata-se de fenótipos. Eu posso ter mais genes de branco que você, mas se o meu fenótipo é negro sou discriminado.
      Há um estanhamento quando apareço em determinados ambientes, e a universidade é um deles. Mesmo sendo da raça negra quando encontrei negros no Conselho Nacional de Educação me espantei, em tantos anos que existem estes conselhos só recentemente os negros (fenotipicamente falando) passam a fazer parte.
      Sou contra as cotas sociais, pois, estas me parecem esmolas. Contra as cotas sociais valem os argumentos de ensino de qualidade para todos.

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  8. Olá Professor, muito interessante e esclarecedor o documentário.

    Mas, não sou a favor nem contra, houve discussão e votação, para min o resultado é justo.
    Ambos os lados possuem justificativas válidas.

    O problema é que essa discussão joga o rojão na mão da sociedade.
    Pois, esse problema existe graças a imcompetência do Estado brasileiro que a décadas não consegue promover maior acesso da população a universidade.
    Devem existir mais universidades, para que não falte vagas!

    Para min só o fato de existir vestibular já mostra quanto é retrogrado o sistema educacional brasileiro.

    Enquanto isso o povo se mata para ter direito a educação que é obrigação do Estado fornecer a todos os cidadãos.

    Saudações!

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  9. Caro Ozaí,

    As classes médias de hoje, que são contrárias as políticas de cotas raciais e para alunos das escolas públicas, num passado não tão remoto assim lutaram pelo implantação do vestibular meritocrático para ampliar o seu acesso à universidade que até então tinha mecanismos aristocraticos.
    Um dado importante dessa luta é o de que as classes populares no Brasil estão, através de várias estratégias, querendo que seus filhos cheguem à universidade.
    Axé!
    Moisés Basílio

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  10. Concordo, Ozaí. E nós, professores da escola pública vivemos o eterno dilema entre proporcionar aos alunos uma formação que os prepare para o vestibular, ou seja, conteudista, ou privilegiar um currículo que efetivamente promova a emancipação do ser humano. Infelizmente, temos um vestibular que favorece o conteúdo de “gavetinha” e não o verdadeiro conhecimento.

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  11. Sendo o Brasil um país conhecdo como o País da multiracilidade,este tema caiu que nem uma bomba numa utopia surpreendente .

    Sou portuguesa branca de 2ªclasse só pelo facto de ter nascido em Moçambique e nem hoje ,após trinta e seis anos do 25 de Abril sou portuguesa de gema.

    Estigma de uma revolução que atirou por terra um mito com pés de barro.

    Surpreende-me que o Brasil que fez arauto do promover,graduar,e favorecer tenha caido nas teias da utopia dos valores humanos.-tábua rasa?-

    Que esses principios de que fez tanto alarde estejam a revitalizar o velho e ignóbil sistema do apartheid é lamentável.

    O ingresso á Universidade não pode sequer estar ligado à questão social quanto mais a questão racial.

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