Por que e para que publicar?!

“Há gente demais desesperada em publicar” (L. Waters)[1]

O imperativo é publicar: “as publicações acadêmicas se tornaram tarefa em série, como as peças que rolam pelas esteiras de uma linha de montagem. A produção é ofuscada, do mesmo modo que a recepção de tais produtos”. Ou seja: “O produto é tudo que conta, não sua recepção, não o uso humano. Isso é produção de um fim em si mesmo e praticamente mais nenhum outro”.[2]

Estamos num ritmo de produção taylorista-fordista: “O estudioso típico se parece cada vez mais com a figura retratada por Charlie Chaplin em seu Tempos modernos, trabalhando louca e insensatamente para produzir. Estaríamos tomados por uma força que ultrapassou nosso controle? Devemos nos render ou lutar? O que se pode fazer?”[3]

A julgar pelos sábios da “Casa de Salomão”, só nos resta a adaptação. A sabedoria atual diz: “não formule grandes questões; não pergunte por que as coisas são como são”.[4] Fique dentro da baleia![5] Cada vez mais pessoas reduzem o trabalho acadêmico ao objetivo de conquistar postos, se dar bem em editais, etc. Abandonam “a aprendizagem como um valor em si em nome da busca por credenciais”.[6] Mas, “enquanto aceitarmos esse sistema, permaneceremos dentro da baleia”.[7]

Afinal, por que escrever e publicar? Por que nos submetemos à pressão produtivista? Por que aceitamos que as estruturas burocráticas determinem o ritmo das nossas vidas? Para que servem tantos artigos “científicos”? Em que consiste o caráter “científico”? Na mera obediência aos padrões normativos? Quais as conseqüências deste produtivismo? Qual a cultura que fortalecemos quando aceitamos as regras como se fossem inexoráveis? Claro, há recompensas simbólicas e materiais!

Se questionamos, nos lançam à face o argumento de que os que determinam as normas que direcionam a vida acadêmica são nossos pares. Além de não contestar o poder burocrático, querem nos responsabilizar. Não sei dos demais, mas, quanto a mim, não indiquei nem elegi ninguém para me representar nos órgãos superiores. Ao poder burocrático interessa manter a ordem das coisas, sua força advém da aceitação da cultura produtivista. Seus alicerces estão bem fincados no ethos do profissional acadêmico que aceita acriticamente as ordens de cima. A servidão voluntária predomina até mesmo em setores dos quais se espera a atitude da reflexão crítica. O poder burocrático não é uma abstração, mas aparatos materiais com gente de carne e osso. Ele se legitima pelo conformismo e capacidade de adaptabilidade dos pares. Que os que dão vida aos aparatos burocráticos falem em nome dos que os apóiam, mas não em meu nome!

A necessidade de critérios para a avaliação das atividades no campus não justifica a camisa-de-força do poder burocrático. A exigência de mais e mais produção científica produz deformações e estimula atitudes anti-éticas e abusivas. No limite, abrem-se as portas para práticas nada condizentes com o que se espera dos intelectuais e favorecem a delinqüência acadêmica. É lógico que não podemos fechar os olhos ou nos considerarmos totalmente isentos dos “pecados” inerentes à cultura produtivista. Como editor de revistas, por exemplo, compreendo a angústia dos colegas diante da exigência de publicação. Até entendo a pressa que têm em publicarem. Disto, muitas vezes, depende a carreira a acadêmica, a aprovação em determinados estágios. É o presente e o futuro que estão em jogo. Por outro lado, é preciso diferenciar entre a atitude motivada pela necessidade imperiosa de publicar, mas que se mantém dentro dos limites do razoável e ético, e aquela que beira as raias da delinqüência acadêmica. Ou seja, nem todos somos delinqüentes acadêmicos.


[1] WATERS, Lindsay. Inimigos da esperança: publicar, perecer e o eclipse da erudição. São Paulo: Editora da UNESP, 2006, p.88.

[2]Idem, p. 42.

[3] Idem, p. 52.

[4] Idem, p. 53.

[5] “As entranhas da baleia”, escreve George Orwell, “são apenas um útero grande o suficiente para conter um adulto. Lá ficamos, no espaço almofadado e escuro em que nos encaixamos perfeitamente, com metros de gordura entre nós e a realidade, capazes de manter uma atitude da mais completa indiferença, não importa o que aconteça” (ORWELL, G. Dentro da baleia e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 135).

[6] WATERS, 2006, p. 81.

[7] Idem, p. 83.

19 comentários sobre “Por que e para que publicar?!

  1. Gostei do texto. Sobretudo pelo que vejo e acompanho da editora da universidade onde estudo, Editora da USP. O presidente não é um intelectual, apenas um editor carreirista e dono de uma editora particular: Ateliê Editorial. Quando passo na livraria para ver as novidades da Edusp vejo que alguns professores têm preferência ou está incluída numa rede de conluios, afinidades e troca de favores, pois publicam a rodo. Quando folheio os livros, ávido por algo original, só vejo mais do mesmo, generalidades e, diga-se de passagem, certas obras desta editora não merecem o título de obra acadêmica.

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  2. Eu que o diga. Convivi com isso dentro da Universidade durante o meu curso. Agora, gostaria de me inscrever para um mestrado e não posso, pois só tenho publicado dois trabalhos e já tem mais de tres anos. E na UFG exige-se que você tenha trabalhos publicados, mínimo três e dentro de três anos. Um desrespeito! Pois realmente a qualidade e a responsabilidade de pesquisadores são questionáveis. Sem falar nos casos que foram descobertos agora dentro da |Instituição, de pessoas que passaram no mestrado e doutorado e seus trabalhos eram plágios. E agora?

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  3. É muito fácil perceber o que diz o seu texto, basta pesquisar sobre a quantidade de livros publicados atualmente. A qualidade deles é questionável, principalemente quando se trata de obra organizada. Basta arrregimentar uma porção de artigos, geralmente de pouco conteúdo, que surge um livro, denomindo por seus autores de acadêmico. Nem mesmo o código ISBN, que permite a inserção do livro no currículo lates, representa qualidade para essas publicações, geralmente custadas pelo dinheiro público, leia-se aqui universidades e outras insstituições congêneres

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  4. O texto expressa o que já muito compreendia, não só com a obsessão por publicação, inclusive para ganhar certas gratificações, como também para ser autor publicado, talvez nunca lido; e que se diga das normas de publicação que mudam todo dia, como se isso fosse tornar o texto científico! É uma verdadeira esquizofrenia-paranóica! O pensar e o saber são deixados de lado. Pena que afete a vida das pessoas, dos professores que têm que se desdobrar para conseguir cumprir todas as exigências.

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  5. Ozaí,

    Parabéns pelo texto!

    Essa expressão “deliquência acadêmica” serve para autores, mas serve, também, para avaliadores, dirigentes, editores, agências de fomento, enfim, para toda a entourage. Não há santos no meio acadêmico – assim como não há em nenhum outro ambiente competitivo!

    Vieira

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  6. A quantidade em detrimento da qualidade…”Há gente demais desesperada em publicar”.
    Publicar o que e para quem?
    O ritmo frenético com o qual algumas publicações da “palavra vazia” são veiculadas, remete á questão de como se dá o critério de seleção daquilo que deve ser trazido ao leitor.
    Estaríamos assistindo a morte da erudição acadêmica? Reflexo da mediocridade que avança à passos largos?…
    Grata pela reflexão a que nos instiga professor Ozaí!…

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  7. A pressão por publicações é evidente em Universidades e Centros de Ensino, porém é importante ressaltar que se não houvesse esta pressão muitos professores se recusariam a escrever exercendo o papel apenas de reprodutor de conhecimento. A produção científica faz com que os profissionais se atualizem ampliando os conhecimentos que irão se refletir no aprendizado dos alunos

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  8. É; realmente há momentos que devemos concordar com essas colocações mas não podemos generalizar. Infelizmente nehuma produção acadêmica se lançará pós-muros das universidades se não favorecer a grupos partidários, a grande mídia marrom ou ainda aos ditames desse capitalismo safado onde, cada vez mais, um bando de governantes pelegos que se dizem políticos também estão envolvidos/vendidos em elaborar leis que amordaçam as academias e/ou o povo no geral. Nunca antes na história desse país a corrupção esteve tão em voga e isso também atrapalha, e muito, um processo revolucionário da sociedade em geral. O dinheiro da corrupção é utilizado para dar migalhas ao povo do prórpio dinheiro do povo (os impostos). Mesmo sabendo que, realmente, as universidades possuem uma linha em grande escala de produções acadêmicos-cientificas ao meu ver não podemos nem devemos dizer que no geral as academias não estão produzindo alguma coisa interessante que um dia possa contribuir para transformar/revolucionar essa “gororoba” que está imposta pra todos nós.

    Abraços.

    Jailton de Sousa Xavier – Professor da educação básica no RN.

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  9. É isso! Eu desisti, vou continuar trabalhando de frentista lá no posto de gasolina! Passe lá, para abastecer e confiram as proesas do doutor em Sociologia, que se nega a “se enquadrar”.

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  10. Oportuna abordagem de tema tão evitado, assim como a linha de montagem de encontros, “seminários”, “congressos etc onde o que menos existe é precisamente DISCUSSâo DE IDEIAS.
    Grata tambem pelas referências. .

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  11. A publicação na carreia de um cientísta deveria ser o seu objetivo final. Não andianta pensar, refletir, divagar, sem compartilhar.

    Bergmann M. Ribeiro

    Prof. Titular e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Patologia Molecular da Universidade de Brasília.

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  12. Isto me lembra a questão do voto obrigatório.
    ORA OBRIGATÓRIA DEVERIA SER ANTES A EDUCAÇÃO SOBRE A HISTÓRIA DA HUMANIDADE E MESMO DO PROCESSO DE CANDIDATURA COMO FUNDAMENTO DA GRANDE CONQUISTA DA REPÚBLICA!
    É uma coação pedagógica, que dos males é o menor…
    Aqui um intelectual que não esteja vadiando com um salário público, deve dizer a todos o que está fazendo…..
    lSe está mais ou menos fértil é algo de menos, mas não podemos tolerar um vadio em meio à fome, ecocídios e outras catastrofes, um delinquente acadêmico e ainda relativamente bem remunerado.
    TEM QUE DIZER DOS SEUS MÉRITOS PARA GANHAR ALGUMA COISA DE TODOS.
    Nas ruas quase ninguém sabe dizer de uma grande novidade vinda das universidades…
    A UNIVERSIDADE SOA-ME MUITAS VEZES COMO UMA IMENSA FÁBRICA DE DELINQUENTES INTELECTUAIS CONVICTOS DE SEUS PRIVILÉGIOS DE FAZER O QUE BEM ENTENDEM, E INCLUSIVE O NADA – O PURO ÓCIO.
    A universidade precisa engajar-se nos processos de soluções para nosso tempo e isto se reflete nas publicações, parcialmente, visto que muitas apenas refletem os nepotismos, os diversos tipos de afinidades para o nada, famosos nos bastidores.
    Quem tenta escrever com seriedade produz no mínimo uma pequena catarse diante de algum problema relevante, e isto é significativo para que a cultura se robusteça a partir daqueles que são pagos para fazer a intelectualidade profissional.
    NOSSO CISNE É MAIS AGRESSIVO POIS TENTA INSTITUCIONALIZAR MAIS A PRESENÇA DE TODA A UNIVERSIDADE EM DESAFIOS DE SEUS ENTORNOS, AO INVÉS DE DESFILAR IMPUNEMENTE NUMA INDIFERENÇA CRIMINOSA, OCIOSA, PARTE DA CULTURA CORRUPTA QUE VEM NOS DESTRUINDO DIARIAMENTE A PARTIR DE UMA VIOLÊNCIA DE NÚMEROS DE GUERRA.SHALOM

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  13. Muito perspicaz esse texto. Realmente devemos rever certas posições frente aos nossos pares acadêmicos. Acatar à tudo sem contestação, principalmente para os pensadores da área de humanas, é inconcebível. Sem dúvida que a produção científica de artigos é salutar quando utilizada coerentemente, pois o saber, precisamente a construção de saberes é que nos impulsiona e dá sentido à nossa vida profissional. Cabe então, como lição apreendida, refletirmos seriamente quanto à produção de artigos em massa simplesmente para alimentar o “monstro do lattes” como diz o senso comum. Deve existir, sim, vida para além das formalidades, e nesse sentido escrever se torna de fato um exercício pleno do intelecto, pois o conhecimento só tem sentido se compartilhado.

    Um abraço,
    Silvânio Paulo de Barcelos

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  14. “Esperança” por que? Nas universidades populares (sp), a “baleia” é maior ainda!

    Obrigada pelas indicações de obras, assim como os textos e artigos, sempre um bom motivo para “reflexões críticas”. Abs

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  15. Parabéns pelo texto!!!

    O que se vê atualmente é uma vergonha, há profissionais que deixam de lado a sua formação para escrever algo vazio, algo que seja apenas futilmente vendável sem responsabilidade ética pelo impacto maléfico que está a produzir moralmente e socialmente, há pessoas que leem sem a menor crítica,é preocupante.

    Grande abraço

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