Nós e Eles

Não estou entre os que vêem o mundo e realidade social e política sob as lentes do maniqueísmo.[1] Resisto à concepção dualista que reduz a complexidade do real à oposição entre o bem e o mal. O humano é um ser não redutível ao raciocínio maniqueísta. A história da humanidade demonstra que os bons, que se vêem como os justos, cometeram atrocidades. O mal mora no coração e nas mentes dos bons e ninguém é absolutamente bom ou mal. A depender das circunstâncias somos capazes de atitudes que não imaginamos e não nos reconhecemos. A nossa bondade pode causar muitos estragos, ainda que involuntariamente.

A história também comprova que meios considerados maus podem gerar bons resultados. O movimento da história é dirigido pela violência. Como diria o filósofo da práxis, a violência é a parteira da história. No entanto, ela é cruel e sangrenta. Consome almas e corpos; causa sofrimentos, dores indescritíveis e deixa marcas nos que sobrevivem. Não obstante, para o bem ou para o mal, a violência transforma o mundo. Só os ingênuos, os candidatos à beatificação e os que vivem com a cabeça nas nuvens não reconhecem este fato. Os profetas desarmados sucumbem. Se refletirmos bem, mesmo as religiões que afirmam o bem contra o mal foram regadas com sangue e padecimentos. Estudemos, por exemplo, as origens e evolução do cristianismo!

É a dialética da contradição humana. Somos seres contraditórios e talvez o maniqueísmo seja uma espécie de porto seguro. Quando estabelecemos muros que separam os “bons” dos “maus”, os “puros” dos “impuros”, invariavelmente nos colocamos do lado dos “bons” e dos “puros”. Isto nos dá segurança, sentido à vida e apazigua as nossas consciências. E aos que acreditam nos céus, alimenta a esperança de que serão salvos. Não esqueçamos que também o maniqueísmo é uma construção humana e corresponde às necessidades do ser no mundo. É compreensível.

A politização do ideário maniqueísta é um problema. A dialética é derrotada e substituída por dualismos que beiram a irracionalidade. Os “bons” e os “maus” são definidos a partir de critérios morais, à maneira religiosa, e o maniqueísmo é instrumentalizado para definir lados como absolutos. Amigos versus inimigos, nós contra eles. Ora, a divisão dual é incapaz de explicar a heterogeneidade entre os “nossos” – e pode nos fazer crer, erroneamente, que não há diferenças entre eles.

Contudo, é preciso escolher um lado. A neutralidade é uma doce ilusão e o apolitismo é próprio, como diria Brecht, do analfabetismo político. Há muito que escolhi o meu lado e, apesar das crises, da queda dos muros ideológicos (ainda bem!) e das decepções políticas, ainda me identifico com a escolha que fiz. Politicamente, estou com aqueles que lutam contra as injustiças geradas pela sociedade capitalista. São os libertários e marxistas, mas também os cristãos da teologia da libertação e/ou que assumem posições políticas à esquerda. Sim, estou entre os que se identificam com os princípios e valores ideológicos da esquerda. Somos “nós” contra “eles”.

Não é a rendição ao maniqueísmo, muito pelo contrário. Há muito superei a fase em que acreditava que estava entre os “bons” contra os “maus”. Tenho clareza de que o nosso lado, como o deles, é composto por seres humanos imperfeitos. Sei que os meios e fins de muitos dos “nossos” são profundamente autoritários. Se tomassem o poder político, eu estaria na oposição de esquerda em defesa da liberdade de expressão e de crítica. Muitos dos “nossos” também são corruptíveis e não vacilariam em perseguir os “inimigos” da nova ordem. Sou parte do “nós”, mas sem ilusões em suas utopias autoritárias e meios que contradizem os fins almejados, tão retoricamente enfatizados!


[1] A filosofia maniqueísta surgiu na Babilônia e Pérsia no século III. O seu fundador foi o profeta Mani (ou Manés).

11 comentários sobre “Nós e Eles

  1. “Sei que os meios
    e fins de muitos dos “nossos” são
    profundamente autoritários. Se
    tomassem o poder político, eu estaria na
    oposição de esquerda em defesa da
    liberdade de expressão e de crítica.
    Muitos dos “nossos” também são
    corruptíveis e não vacilariam em
    perseguir os “inimigos” da nova ordem.
    Sou parte do “nós”, mas sem ilusões em
    suas utopias autoritárias e meios que
    contradizem os fins almejados, tão
    retoricamente enfatizados!”

    Boa tarde, professor Ozaí

    Foi com imensa satisfação que li o seu artigo “Nós e Eles”. É um sopro de esperança para alguém como eu, que tem esperanças em ver gente de esquerda lúcida e comprometida com a liberdade – essa nobre imcompreendida… –, principalmente na condição de docente. Apesar de rara, lendo suas palavras, vejo que ainda existe gente assim!

    Espero que cada vez mais possamos contar com pessoas que tenham a lucidez necessária de se lutar pela justiça sem deixarem seduzir-se por métodos tão ou mais reprováveis quanto os “deles”.

    Saudações

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  2. Prof. Ozaí, Percebi pelo seu texto, que juntar-se aos “bons” , as vezes contraria posições ideológicas, mas por modismo, influência dos “maus”, ou interesse pessoal (isso ocorre muito na política eleitoreira) a justiça pende, quase sempre para o “mau”. (estou considerando entre os “maus”, a concentração de renda, a desigualdada, a censura, a exploração etc). Contra esse maniqueísmo, eu me inspiro em Dacy Ribeiro: “Na verdade somei mais fracassos que vitórias em minhas lutas, masi isso não importa. Horrível seria ter ficado ao lado dos que me venceram nessas batalhas”.

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  3. Antonio
    bom dia
    cometi pecado.
    Li mais os comentários (com atenção) que tuas ponderações.
    O que individualmente estamos a fazer de fato ainda é muito pouco (embora no limite de nossas forças) e frustrante quanto aos resultados. Os Capitalistas e seus aulicos continuam a ditar as regras.
    Possivelmente falte mais o nós do que o Eu!
    O envolvimento político tem preço aviltado, o estigma social, o desemprego, a fome, o ostracismo, o desprezo, a incompreensão, o risco constante de morte, etc. No meio tb muitos são de fachada e quanto “toca” cumprir tarefas se rebelam e fogem, fazendo estragos maiores que os adversários que defendem e se locupletam do status quo.
    Mesmo assim seguimos defendendo o salário mínimo constitucional, o direito de greve, contra os juros extorsivos, contra o desemprego, o analfabetismos e pelo direito de não votar, entre outros.
    Um abraço
    Pedro

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  4. [Correções. Companheiro Ozaí, pode me fazer o favor de apagar o meu comentário anterior e postar este aqui? Havia um erro de digitação que modifica o significado. Obrigado e perdoe o descuido.]

    Ora… Esse “nós”, do ponto de visto sociológico em relaçao à transformação da sociedade, está completamente difuso, ou permanece desconhecido: ninguém sabe qual poderia ser hoje o sujeito de uma revolução social, o “nós” pra valer. Os ‘trabalhadores” é vago demais; o “povo”, então, nem se fala. Seria necessária boa dose de estupidez para que alguém nos achasse, a “nós”, os lindos e maravilhosos. Inclusive porque, de uma certa maneira, “nós” não existimos.

    E os inimigos de agora e de depois não tem que ser combatidos, e combatidos até as últimas consequencias, NÃO porque são “maus”, e sim porque os interesses deles se chocam com os nossos, e por aí deveríamos ser muito realistas e objetivos.

    E apenas uma luta violenta pela tomada do poder político seria justa, se é que “nós” temos algum compromisso com a concretização daquilo que alardeamos. Mas não há contexto pra isso, hoje, de maneira nenhuma.

    Uma boa saída é considerar que esta época simplesmente pertence a “eles”, os inimigos em escala local e mundial, e que somente poderemos retomar alguma ofensiva quando o colapso do capitalismo começar a se anunciar — a se anunciar e a se mostrar, ainda que ao preço da própria civilização.

    Mas voltando ao tema do artigo. Jorge Amado disse certa vez: “As melhores pessoas que conheci, conheci-as no Partido Comunista. As piores também.”. Eu sei muito bem como Jorge Amado se sentia quanto a isto de conhecer as melhores e as piores pessoas no partido.

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  5. Faço também minha a curiosidade que levou “Carlos” a postar o comentário dele às 17:40 de hoje : ¿ O que o inspirou a escrever este texto ?

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  6. Bom texto, Ozaí. Considero também que na realidade contraditória em que estamos imersos não somos exatamente pêndulo sempre oscilante entre pólos contrários, mas que, geralmente, coexistem em nossa vida particular e na história forças e ações que devemos chamar umas de boas outras de más.

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  7. Excelente artigo. Tem a rara qualidade de mostrar a multifacidade do ser humano tanto sob o ponto de vista social como humana, psíquica e política.Mas a maioria dos letrados/ignorantes que lerão este seu artigo não perceberão sua profundidade e abrangência. Poderia, inclusive, ser desenvolvido aos ares da Filosofia.
    Parabéns
    Castor

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