Hannah Arendt, verdade e política

Hannah Arendt, na obra Entre o passado e o futuro, observa que Verdade e Política são, em geral, incompatíveis. Em suas palavras

“Jamais alguém pôs em dúvida que verdade e política não se dão muito bem uma com a outra, e até hoje ninguém, que eu saiba, incluiu entre as virtudes políticas a sinceridade. Sempre se consideraram as mentiras como ferramentas necessárias e justificáveis ao ofício não só do político ou do demagogo, como também do estadista. Por que é assim?” (p. 283) *

Essa é uma questão filosófica e histórica antiga. Arendt exemplifica com o resgate do mito da caverna de Platão. O ser humano prefere a ilusão à verdade. Na política, como no cotidiano, a verdade pode se tornar insuportável. No fundo, é o velho problema das relações entre os meios e os fins, como bem analisou Maquiavel.

A autora observa que existem a verdade filosófica e a verdade fatual. A primeira é, em geral, restrita ao plano do indivíduo (filósofo) e só tem eficácia quando, inserida no espaço público, torna-se opinião. A segunda, diz respeitos aos fatos, mas estes podem ser interpretados. Eis um tema polêmico:  “Mas os fatos realmente existem, independentes de opinião e interpretação? Não demonstraram gerações de historiadores e filósofos da história a impossibilidade da determinação dos fatos sem interpretação (…)?” (p. 296)

Hannah Arendt (1906-1975)

A autora defende a existência da matéria factual e, neste sentido, rompe com o relativismo dos que vêem os fatos e a história apenas sobre a ótica das interpretações. A possibilidade de interpretar não justifica que a manipulação dos fatos pelo historiador signifique a sua anulação (como no romance de George Orwell, 1984). Quando os fatos são manipulados, rompe-se até mesmo o direito à interpretações diferentes e cai-se na pura e simples falsificação, mentira. A interpretação é uma forma de reorganizar os fatos de acordo com uma perspectiva específica. Este procedimento é muito diverso do manuseio da matéria factual à maneira das ideologias autoritárias como o stalinismo, nazismo e fascismo.

Para ilustrar, Hannah Arendt conta que Clemenceau, ao ser perguntado sobre como os historiadores iriam interpretar quem teria a culpa pela Primeira Guerra Mundial, respondeu:

“ – Isso não sei. Mas tenho certeza de que eles não dirão que a Bélgica invadiu a Alemanha.” (p. 296)

Ou seja, pode até haver interpretações e opiniões diferentes, mas elas não poderão dizer que o que ocorreu não ocorreu. Então, sai-se do âmbito da história e degenera-se na falsificação histórica, na negação dos fatos. Como salienta Arendt, “a persuasão e a violência podem destruir a verdade, não substituí-la” (p. 320).

A mentira política, antes própria dos espaços diplomáticos, generalizou-se; o mentiroso diplomata não perde a noção da verdade (mente em determinadas circunstâncias e sabe que mentir é parte do jogo); a mentira moderna confunde-se com a verdade e o mentiroso perde a noção dos limites: ele próprio passa a acreditar na mentira que apregoa.

Sim, a política é o âmbito dos interesses parciais e particularistas em confronto; os quais precisam da áurea do bem-comum e do universalismo. Na política, o que importa são os resultados; a mentira, em geral, prevalece. Não obstante, ela tem significados positivos. Arendt refere-se à “recompensadora alegria que surge de estar em companhia de nossos semelhantes, de agir conjuntamente e aparecer em público; de nos inserirmos no mundo pela palavra e pelas ações, adquirindo e sustentando assim nossa identidade pessoal e iniciando algo inteiramente novo.” A ação política, apesar dessa grandeza, tem limites, pois “não abarca a totalidade da existência do homem e do mundo” (p. 325). Há coisas que a vontade humana não pode modificar e aí cessa a influência e o poder da política.

 


* ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo, Editora Perspectiva, 2001.

7 comentários sobre “Hannah Arendt, verdade e política

  1. “…O ser humano prefere a ilusão à verdade. Na política, como no cotidiano, a verdade pode se tornar insuportável…)”. Talvez fosse melhor substituir “prefere” por “tende”, pois prefere tem um sentido ser consciente, enquanto que “tende”, o ser humano tende…parece-me mais “made in Inconsciente”. Ele tem a ilusão que acredita ser verdade sobre histórias, deuses, etc. Ou seja, porque o ser humano tende a ilusão, ele termina sendo refém não apenas do jogo político, mais marcado de paixões do que de razões. Ainda, o ser humano tende para acreditar em coisas do além, lendas, contos, e tudo que diz respeito ao sagrado e sua institucionalização. Assim, milhares de cristãos acreditam na virgindade de Maria, ou na santidade dos santos, nas palavras do profeta X, e nas ignorâncias dos pastores de nossa época. Mesmo assim, estes pastores evangélicos, padres carismáticos, entre outros, conseguem discípulos que morrem por “fake news”, ou para proibir uma exposição artística, ou queimam livros, queimaram discos dos Beatles nos anos 60. “Quanta verdade o ser humano é capaz de suportar? deveria ser um critério para avaliar a maioridade intelectual, alertava Kant.

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  2. A vida é uma luta, escreveu o Poeta. Política não é para ser consumida como crítica, é para ser exercida na luta diária. Quem não luta, não participa, é mero expectador. Olha de longe, critica sem sentir de fato como a política acontece. Os atores políticos refletem o meio em que vivem, a cultura na qual foram criados. São o que são em função da sociedade e da cultura onde foram educados. Os que apenas criticam sem exercer esquecem que fazem parte da mesma sociedade e da mesma cultura. Provavelmente fariam as mesmas coisas nas mesmas circunstâncias, mas preferem a masturbação psíquica de fazer de conta. A luta vale a pena. Só ela nos dá a dignidade. Me aidamaki, me uchi odná! DANIEL MACEDO

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  3. Existe um dito popular que diz que uma mentira muitas vezes contada torna-se verdade, e a verdade por muito tempo oculta torna-se lenda.
    Mas na polêmica “verdade e política”, podemos resumir a grosso modo que elegemos mentirosos patológicos para nos representar nas instâncias políticas em que não nos expressamos pessoalmente. Dado a gravidade do problema onde o Estado é no mínimo esquisofrênico, não seria de se pensar em eliminar a representação política, visto que o representante mente para seus eleitores do momento que faz promessas em troca de voto até o momento que deixa o cargo e responde por seus mandos e desmandos?
    Nas próximas eleições invés de pensar em quem votar, porque não pensar seriamente em NÂO VOTAR.
    Claro que temos uma educação política tão enraizada que não nos permiti pensar de outro modo que não seja a construída nos moldes democráticos, do tipo: “Se eu não votar, haverá de qualquer forma um representante eleito pelos outros votantes”
    Mas e se ninguém votasse?…

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  4. Caro Ozaí, gostei do artigo! Pois duma forma geral ele enquadra-se em todas as latitudes politicas, não é só no Brasil mas principalmente aqui em África. A politica e a verdade, é como a água e a energia. Da mesma forma que da água cria-se energia para gerar desenvolvimento em determinada área melhorando a vida social de uma comunidade. A politica serve-se da verdade para continuar mentindo,levando determinado Povo à miséria e outras cevícias daí emanadas. Este ciclo de mentiras acentua-se cada vez, porque ele cresce como um câncer, quando se começa a mentir nunca mais se pára. Daí que não se conhece um político totalmente honesto. Até mesmo nas sociedades mais avançadas como Noruega, Finlandia, Àustria e Japão. E isto é uma tristeza para nós humanos, quando sabemos que existem mais politicos do que médicos no mundo. Obrigado. A.Fortes- Angola

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  5. Concordo absolutamente que Verdade e Política são incompatíveis!
    No Brasil, política significa a arte do engodo, da desfaçatez, da dissimulação, da conveniência, da manutenção do poder.
    Verdade quer dizer uma palavra desconhecida, que não se pode traduzir, mistério absoluto, se relativa à politica brasileira, aliás, na grande maioria dos países deste mundo.
    A questão é por que a política se deixou levar desta forma; por que se deteriorou tanto assim; por que hoje é sinônimo de trampa, negociata, desonestidade.
    Será que a política tem o dom de nos fazer mostrar como efetivamente somos?
    Que as nossas verdadeiras intenções são obscuras com o próximo?
    Que o desejo de enganar, ludibriar, predomina sobre a sinceridade, honestidade e verdade?
    Então gostamos mesmo de ser iludidos?
    Fazemos questão de sonhar o impossível e lutar por algo inacessível?
    Somos os Don Quixote atuais?
    A classe política não tem idéia do mal que comete contra o povo, a partir do momento que os exemplos que surgem à tona de mau uso do dinheiro público, desvios de verbas, distribuição de cargos sem concurso púiblico, loteamentos de estatatais, divisão dos ministérios às bases aliadas, escãndalos sem que se apurem os verdadeiros responsáveis e as devidas punições, um mar de falcatruas e corrupção reinantes sem qualquer pudor, o povo também se questiona por que agir corretamente?
    Se o político notadamente desonesto é eleito e, com ele, seu partido igualmente tramposo, não poderemos exigir uma conduta adequada por parte daqueles “representantes” do povo pois, sabidamente, seus eleitores tinham ciência desta forma de agir de seus escolhidos!
    A verdade, por sua vez, sempre foi pelo ser humano desvirtuada; não a suportamos olhá-la de frente; não temos condições de enfrentá-la.
    Desde que nascemos somos iludidos: Papai Noel, Coelhinho da Páscoa, Cegonha, Fadas, Lobos Maus, Chapeuzinhos Vermelhos, uma infinidade de estórias e mitos que vamos colocando em nossas mentes e que queremos que a vida mais tarde seja parecida!
    Concordo com a expressão: “me engana que eu gosto”.
    Preferimos a ilusão à realidade; optamos pelo sonho à luta; pensamos ser melhor usar maquiagem e roupas extravagantes para que a nossa imagem melhore que nos mostrar como efetivamente somos.
    Os óculos escuros já nos alteram a fisionomia e, o perfume, um falso rastro de um odor agradável, quando muitas vezes estamos aplacando um aroma nada apreciável pela falta de banho!
    Ora, ouvir um político desonesto prometer melhor qualidade de vida por que não acreditar nele?!
    Ouvir dos “representantes” de Deus que se eu não seguir os mandamentos vou para o inferno, torna-se mais plausível que se pesquisar sobre as nossas origens e concluir que esta é mais uma das tantas baboseiras que aprendemos ao longo do tempo.
    Enfim, somos criados em cima de bases falsas, de lendas, sagas, mitologias, um esforço hercúleo (outra figura mitológica, o Hercules) para minimizarmos a verdade que nos cerca, a realidade da nossa existência, as razões de se viver.
    Somos desviados do caminho que poderia nos conduzir a uma existência com mais felicidade, menos ódio, inveja, preconceito, justamente porque fazemos questão da fantasia, da estúpida alegação que se não sonhamos não alcançamos nossos objetivos!
    Verdade e Política são incompatíveis, sim, mas, nós, homens, fomos feitos do barro e, a mulher, de uma de nossas costelas, então, temos uma história calcada em devaneios, em simbolismos, ou seja, jamais seremos também aliados da verdade, ao contrário, quando necessitamos dela somos os primeiros a descrê-la, a mistificá-la, a subvertê-la.
    O ser humano é uma mentira para si mesmo, a partir do instante que abandona o próprio poder de construir a felicidade alheia e a sua, em benefícios de crenças e doutrinas vãs e fé em homens falsos e desonestos!
    Urge que alteremos a nossa mente enquanto há tempo.

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  6. A ilusão , ai, nos parece uma mentira adocicada, que confunde – nos, e muitas vezes, nos leva a acreditar nas mentiras do peritos …
    Qual verdade o Estado e o estado emocional do humanos consegue suportar ?
    Sempre fomos / somos sucetíveis á ilusão / mentira em relação ao poder ?
    Ozai , essa é , uma das melhores reflexões. Parabéns !
    Cássia Liberatori
    Rio de Janeiro

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