“O amante”, de Marguerite Duras

*A releitura de O amante**, obra clássica de Marguerite Duras, evidencia novos aspectos. Agora o “olhar” do leitor percorre o texto amparado numa chave interpretativa pós-colonialista.

A relação da “moça branca” com o amante chinês expressa situações que, a meu ver, são passíveis de universalização, considerando-se as dificuldades presentes – por exemplo, a idade da moça, as diferenças econômicas e a caracterização como prostituição etc. As reações do “amante” – fraqueza, choro, paixão e dependência da moça, etc. – não são especificidades determinadas pelo caráter colonialista que envolve os personagens. Tais sentimentos são próprios de qualquer ser humano. Isto pode parecer óbvio, mas foram aspectos que tive que observar devido à “chave interpretativa” que guiou o meu “olhar”.

Nesta releitura, observei aspectos que caracterizam valores e atitudes preconceituosas e colonialistas na relação da “moça branca” e sua família com o “homem chinês” e os nativos da Indochina, à época sob domínio francês. A certa altura do seu relato, a narradora se refere à sua infância, sob “o sol intenso” e em condições de miséria. Mas trata-se de uma miséria diferente das dos nativos:

“… não passávamos fome, éramos crianças brancas, tínhamos vergonha, vendíamos nossos móveis, mas não passávamos fome, tínhamos um empregado e comíamos porcaria, galinholas, filhotes de caimão, mas essas porcarias eram preparadas por um empregado, servidas por ele e às vezes recusadas por nós, podíamos dar-nos ao luxo de não querer comer” (p. 10).

Não fosse a referencia à cor, “éramos crianças brancas”, tal relato apenas demonstra um certo sentimento próprio do ser humano, embora possa ser condenável. Refiro-me à necessidade que alguns seres humanos têm em se sentirem superiores, ainda que sua situação econômica não o permita. É uma superioridade frágil, que se sustenta apenas pela vaidade e narcisismo.

Em O amante, a referência à cor branca não é mero acidente lingüístico. Neste caso, a cor é um diferencial a mais para refletirmos sobre o sentimento de superioridade. É interessante como a “moça branca” e sua família tratam o “homem chinês”. Ela se encontra praticamente no papel de prostituta e sua família se beneficia dessa relação diante do amante rico. Contudo, se colocam, por serem brancos, europeus e colonialistas, como hierarquicamente superiores. Isto também expressa a distinção entre o nativo e o colonizador.

A inferiorização dos indivíduos é também um dos principais fatores para a manutenção do domínio colonial. O racismo termina por justificar a dominação econômica e colonialista. Mesmo o fato do “homem chinês” ser rico não supera a concepção eurocêntrica e racista da moça branca e sua família.


* Publicado em Literatura Política & Sociedade, 01.09.2007, disponível em http://literaturapolitica.wordpress.com/2007/09/01/o-amante%E2%80%9D-de-marguerite-duras/

** DURAS, Marguerite. O Amante. São Paulo: Circulo do Livro, s.d.

4 comentários sobre ““O amante”, de Marguerite Duras

  1. Deveríamos colocar inúmeros óculos, ao abordarmos um texto. Quando se usa somente os de lentes ideológicas, enxergaremos somente pelo viés de: Exploradores X explorados, colonizadores X colonizados, capitalistas X proletários, brancos x negros/amarelos etc.,etc.
    Neste contexto, Marguerite Duras aborda a dimensão do racismo europeu em relação aos orientais na Indochina e, também, o reverso da medalha, isto é o racismo dos orientais em relação aos colonos (exploradores), hoje os chineses fazem o mesmo papel na miserável Africa numa postura tão arrogante que alguns países não os querem para parcerias nos negócios. Não creio que a autora tenha esta visão, mesmo porque pertenceu ao PC Francês. O livro fala de um amor inter-racial, tendo como pano de fundo o imperialismo francês naquela região. É uma denúncia e não um “loas” ao eurocentrismo.

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  2. o racismo é sempre uma resposta simples e primaria a situaçoes complexas; é sempre mesquinho face a pessoas que teriam o direito de esperar um olhar generoso.

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  3. Antonio
    Bom dia
    Mesmo no Brasil, embora toda miscigenação existente (talvez hipótese, sejamos no mundo o local onde as diferentes origens não impedirem vários modelos de aproximação e convivência), os preconceitos persistem. Essa situação não se limita tão somente ao campo econômico, mas atinge outras esferas, como o cultural, lingüístico, procedência, cor da pele, religião, sexo, profissão, e outros.
    Infelizmente não valorizamos ainda suficientemente a educação, a qual, em nosso entendimento, poderia minimizar tal disfunção social, levando a uma agregação menos conflitiva. Junto a educação formal precisaríamos ter toda uma interação proativa dos Meios de Comunicação, no sentido de derrubar as barreiras dos preconceitos.
    A jornada é deveras árdua e possivelmente cheia de agruras. Temos já a favor dessa tese um histórico de vitórias, as quais, não obstante ainda não foram e não são suficientes para mitigar os atritos decorrentes dos preconceitos.

    Cordialmente
    Pedro
    Caxias do Sul – RS

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  4. Seu artigo me lembrou um episodio da época em que fui estudante em Estrasburgo e morava na Cidade Universitaria. Uma de minhas colegas do mestrado de Filologia românica era uma inglesa, gordinha, bonita, um belo rosto de lua cheia, apesar do aspecto meio engordurado, e muito simpatica. Um dia resolvi fazer um jantarzinho no meu quarto de estudante e convidei essa moça, mais uma colega francesa e um estudante indiano, que tinha proposto me ensinar a jogar tênis, um cara da maior elegância e refinamento.
    Quando a inglesa soube que eu tinha convidado um indiano, recusou o convite, se desculpando muito, mas explicando que jamais poderia comer junto com um indiano, que para ela isso era impossivel. A francesa achou sem graça vir sem a amiga inglesa e também desistiu.
    Meu jantar virou um tête-à-tête involuntario e nao foi de todo mau. Mas isso ja é outra historia.

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