Durkheim: análise sociológica do suicídio

Émile Durkheim (1858-1917)

Seja o amor não correspondido, o apego ao trabalho ou outra causa qualquer, os exemplos literários apresentam-nos a morte voluntária como resultante de motivações individuais. E assim também se dá na vida real. A primeira dificuldade consiste em definir o suicídio. “Como saber que móbil determinou o agente, como saber se, ao tomar a sua resolução, desejava efetivamente a morte, ou tinha outro fim em vista? A intenção é algo demasiado íntimo para poder ser atingida do exterior, a não ser por aproximações grosseiras”, escreve Durkheim. (1983, p.166)

O jovem que se mata por amor; a jovem que deixa dúvidas se realmente tinha intenção de dar cabo à vida; o velho funcionário que pensa em suicidar-se; o indivíduo que se mata por vergonha diante da falência; o soldado que se sacrifica pelos demais; o samurai que se mata em nome da honra; a renúncia desesperada à vida, etc. São inúmeras as situações em que comumente se adota a designação de suicídio. Portanto, é preciso caracterizá-lo. Segundo Durkheim:

Chama-se suicídio todo caso de morte que resulta direta ou indiretamente de um ato positivo ou negativo praticado pela própria vítima, ato que a vítima sabia produzir este resultado. A tentativa de suicídio é o ato assim definido, mas interrompido antes que a morte daí tenha resultado” (Id., p167).

Na literatura predomina o viés individual e psicologizante do suicídio; na vida real, também. É sandice negar os fatores individuais e psicológicos. Não obstante, não é sensato restringir-se ao indivíduo e ao psiquismo. Como observa Durkheim:

“Visto que o suicídio é um ato do indivíduo que apenas afeta o indivíduo, dir-se-ia que depende exclusivamente de fatores pessoais e que o estudo de tal fenômeno se situa no campo da psicologia. E, aliás, não é pelo temperamento do suicida, pelo seu caráter, pelos seus antecedentes, pelos acontecimentos da sua vida privada que normalmente este ato se explica? (Id., p.168)

Se os suicídios podem ser explicados apenas pelos fatores psicológicos, então, desresponsabilizamos a sociedade. No entanto, nem todos os que sofrem por amor, ou outro motivo qualquer, se matam. Por que outros resistem e não sucumbem ao ato suicida? A resposta está na própria sociedade. É isto que Durkheim demonstra em seu clássico estudo sobre o suicídio enquanto um fenômeno eminentemente social. Não que ele desconsidere a psicologia; ele apenas enfatiza os fatores sociais. “Cada sociedade tem portanto, em cada momento da sua história, uma aptidão definida para o suicídio”, afirma (Id., p.169). Ou seja, em cada sociedade há um número constante de suicidas, uma taxa de suicídio relacionada a cada grupo social, a qual “não se pode explicar nem através da constituição orgânico-psíquica dos indivíduos nem através da natureza do meio físico” (Id., p.177).

As causas do suicídio não estão, portanto, nos indivíduos – e no que eles declaram no momento desesperado em que abraçam a morte. Os indivíduos sucumbem à tendência suicidogênea disseminada na sociedade enquanto um estado geral, isto é, como um fator exterior aos indivíduos e independentes deles.[1]

“As razões com que se justificam o suicídio ou que o suicida arranja para si próprio para explicar o ato, não são, na maior parte das vezes, senão as causas aparentes. Não só não são senão as repercussões individuais de um estado geral, mas exprimem-no muito infielmente, dado que permanecem as mesmas e que ele difere. Estas razões marcam, por assim dizer, os pontos fracos do indivíduo, através dos quais a corrente que vem do exterior para incitá-lo a destruir-se se introduz mais facilmente” (Id., p.182).

Em cada sociedade há a tendência coletiva para o suicídio, uma força exterior aos indivíduos, mas que se manifesta através destes. Esta tendência está vinculada aos diferentes hábitos, costumes, idéias, etc. Sua intensidade é também determinada socialmente, isto é, a partir do contexto de cada sociedade específica. Observe-se que as sociedades não são compostas apenas por indivíduos, mas também por fatores físicos materiais independentes destes e que também influenciam a vida social. A intensidade com que se manifesta a tendência suicidogênea depende dos seguintes fatores:

“…primeiro, a natureza dos indivíduos que compõem a sociedade; segundo, a maneira como estão associados, ou seja, a natureza da organização social; terceiro, os acontecimentos passageiros que perturbam o funcionamento da vida coletiva, sem alterar no entanto a constituição anatômica desta, tais como as crises nacionais, econômicas etc.” (Id., p.199).

Em suma, são as condições sociais que explicam, por exemplo, que o fenômeno suicida se manifeste diferentemente nas diversas sociedades. Isto explica também porque o número de mortos voluntários e a sua distribuição entre as diversas faixas etárias e grupos sociais se mantém constante em cada sociedade específica e que só se modifique este quadro quando mudam as condições sobre as quais se sustenta a sociedade.

A relação entre o indivíduo e a sociedade determina as correntes suicidogêneas. Assim, quanto menos o individuo se encontra integrado à sociedade, maior a possibilidade do suicídio egoísta se manifestar:

“Quanto mais se enfraqueçam os grupos sociais a que ele (indivíduo) pertence, menos ele dependerá deles, e cada vez mais, por conseguinte, dependerá apenas de si mesmo para reconhecer como regras de conduta tão-somente as que se calquem nos seus interesses particulares. Se, pois, concordarmos em chamar de egoísmo essa situação em que o eu individual se afirma com excesso diante do eu social e em detrimento deste último, podemos designar de egoísta o tipo particular de suicídio que resulta de uma individuação descomedida” (Durkheim, O Suicídio, apud NUNES, 1998).

Por outro lado, quanto maior a integração do indivíduo à sociedade, maior a manifestação de outro tipo de suicídio: o altruísta. Se o individualismo excessivo pode induzir ao suicídio, a absorção do indivíduo pela coletividade pode ter o mesmo efeito. “Quando desligado da sociedade, o homem se mata facilmente, e se mata também quando está por demais integrado nela”, afirma Durkheim. (Id.)

Há outro tipo de suicídio analisado por Durkheim: o anômico. Este resulta de desequilíbrios sociais ocasionados por crises econômicas e políticas que modificam as condições sociais sob as quais se amparavam os indivíduos. Nestas circunstâncias, rompe-se a autoridade sustentada nas normas tradicionais e os indivíduos ficam sem referências. A crise produz deslocamentos financeiros, gera falências e processos de enriquecimento que fazem surgir os novos ricos. De um lado, a dificuldade em aceitar a situação material inferior; de outro, a cobiça diante da nova riqueza. E, em meio à crise, a moral não mais se sustenta e os indivíduos são obrigados a se educarem numa nova moral adaptada à nova situação. Este processo é doloroso e coloca em movimento a tendência suicidogênea anômica.

Durkheim esclarece que, em condições normais, as correntes suicidogêneas (egoísta, altruísta e anômica) “se compensam mutuamente”. Assim, o indivíduo se encontra num “estado de equilíbrio que o preserva de qualquer idéia de suicídio. Mas, se uma delas ultrapassar um certo grau de intensidade em prejuízo das outras, tornar-se-á, ao individualizar-se e pelas razões expostas, suicidogênea” (DURKHEIM, 1983, p.199).[2]

A sociedade é real, a morte também não é uma abstração. Se aceitarmos e compreendemos esta realidade, podemos viver melhor e nos resignarmos à certeza da finitude. Dessa forma, é possível superar os tabus e o moralismo que envolvem temas como o suicídio.

O mérito de Durkheim está em demonstrar que o suicídio é um fenômeno social e que é possível estudá-lo a partir da compreensão da sociedade. O suicídio é um fenômeno presente em todas as sociedades humanas, mas sob as condições da modernidade ele assume uma intensidade nunca vista. A responsabilidade é social e não apenas individual. As diversas áreas do conhecimento podem contribuir, mas é necessário que se respeite as suas especificidades e limites, sem que, por isso, neguem-se mutuamente.

Referências

DURKHEIM, Émile. Da divisão do trabalho social; As regras do método sociológico; O suicídio; As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Abril Cultural, 1983 (Os Pensadores).

NUNES, Everardo Duarte. Durkheim’s Suicide: reassessment of a classic from 19th-century sociological literature. Cad. Saúde Pública. [online]. Jan./Mar. 1998, vol.14, no.1 [cited 24 December 2004], p.7-34. Available from World Wide Web: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X1998000100002&lng=en&nrm=iso>

UENO, Kayoko. O suicídio é o maior produto de exportação do Japão? Notas sobre a cultura de suicídio no Japão. In: REA, nº 44, janeiro de 2005 [Tradução: Eva Paulino Bueno]. Disponível em http://www.espacoacademico.com.br/044/44eueno.htm

ZWAHR-CASTRO, Jennifer. O suicídio entre adolescentes americanos. In: REA, nº 44, janeiro de 2005 [Tradução: Eva Paulino Bueno]. Disponível em http://www.espacoacademico.com.br/044/44ecastro.htm.


[1] Isto está relacionado á concepção que Durkheim tem do fato social. Para ele, o fato social, isto é, aquilo do que deve se ocupar a sociologia, se caracteriza por: 1) a coerção social exercida sobre os indivíduos; 2) sua exterioridade em relação aos indivíduos; e, 3) a generalidade. Durkheim mostra que os fatos sociais têm existência própria e independem do que pensam ou da ação dos indivíduos considerados isoladamente. Embora tenhamos personalidade individual, o modo como nos comportamos e agimos obedece a um padrão de condutas e de idéias, valores morais e hábitos, determinados pela sociedade. Esta desenvolve um conjunto de crenças e de sentimentos comuns: a consciência coletiva. Esta consciência não é a simples soma das consciências individuais ou de grupos específicos. Ela é partilhada, em maior ou menor grau, por todos os indivíduos e expressa o tipo psíquico da sociedade, o qual é imperativo e sobrevive às gerações.

[2] O Suicídio foi publicado em 1897. A tipologia durkheimiana permanece atual. Jennifer Zwahr-Castro, ao analisar este fenômeno na sociedade norte-americana, utiliza a sociologia de Durkheim e conclui que, entre os jovens norte-americanos, o mais comum é o suicídio egoístico. (Ver: O suicídio entre adolescentes americanos). Também a socióloga Kayoko Ueno nota que as hipóteses durkeimianas “podem ser ainda relevantes no Japão contemporâneo”. (Ver: O suicídio é o maior produto de exportação do Japão? Notas sobre a cultura de suicídio no Japão).

24 comentários sobre “Durkheim: análise sociológica do suicídio

    • Em se tratando de solidariedade, a religião é uma importante instituição responsável por unir os indivíduos, mantendo sua estabilidade individual ao dar-lhes uma base moral e ao fazer-lhes criar laços com outras pessoas. Nesse sentido, a religião serve como um freio à atitude suicida, especialmente por evitar o suicídio egoísta, uma vez que o sujeito terá laços exteriores a si que evitarão o suicídio. Contudo, a religião também pode ser geradora de suicídio. No caso de mártires religiosos ou de pessoas que se suicidam em nome da honra religiosa, percebe-se a ocorrência do suicídio altruísta.

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  1. Qual seria a tese de DUKHEIM para explicar os suicidios nas sociedades primitiva e indutriais?
    Como podemos diferenciar o suicídio anômico do egoista? Porque nao é assim tão facil de distigui-los?
    Obrigada!

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    • Acredito que não, porquanto não consigo ver coercitividade nesse fenômeno. Os fatos sociais exigem coercitividade para o serem. Na verdade, a depressão está mais inserida num caráter patológico, clínico. Pode ser que ocorra por causa de um fato social, mas isso, obviamente, não importa à sua pergunta.

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  2. Prof. Ozaí, é muito interessante esta página, parabéns, porque Durkheim, sempre enfatiza que só a comparação pode nos fornecer explicações, sobre os tipos e diferentes mortes por suicídio e o que podem ter características comum?

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  3. Roberto Monteiro
    Não morrerei mas viverei e anuciarei as obras do Senhor. (São Paulo aos Corinthianos)

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  4. Nilda comenta.
    Seus textos são sempre desafiadores à reflexão. Ricos em mergulhoSs na complexidade da vida/existência. Falar de suício não se reduz a dados númericos; quantos onde e como? Idosos, jovens, desempregaqdos enfim, fica em aberto qualidade de vidade; desilusão, desamor. perda de sentido da vida. Afinal: VIVER VALE A PENA?

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    • Cara Nilda,

      boa tarde.
      Muito obrigado por ler e comentar.
      Também estou aberto às críticas, sugestões e contribuições.

      O suicídio é algo muito doloroso e difícil de compreender; e assim é o humano, complexo e, muitas vezes, incompreensível. Números não dizem muito da dor de um único indivíduo e dos que se encontram diretamente vinculados a ele por laços sentimentais. Sim, VIVER VALE A PENA. Mas esta é uma percepção individual e pessoal, não responde a questão. Na verdade, é um grande dilema.

      Obrigado.
      Abraços e ótima semana,

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  5. Um tema muito interessante esse do suicídio. Quem já não teve um dia vontade de se matar?
    Há necessidade de muita coragem, isso é indiscutível, além de razões poderosas para dar cabo da propria vida.
    Imagino o quanto a pessoa não se desprende de si mesma, de sua religiosidade, convicções, alegrias, prazeres, e acabar com isso de forma violenta.
    Que grande tristeza! Que extraordinária decepção!
    Mas acredito que o maior índice de suicídios ainda esteja ligado à frustração amorosa, o ser amado que abandona quem lhe ama e o faz sentir um corpo sem espírito, sem alma, sem razão para continuar vivendo.
    O sofrimento é insuportável. Há casos, inclusive, que antes de suicidar-se a pessoa mata o seu amor e depois faz o mesmo consigo!
    Uma grande tragédia. Algo no sentido de, se não vai ser meu esse amor, então que não seja de ninguém.
    Aliás, a literatura aborda essa questão com muita propriedade e as grandes óperas de Verdi, Puccinni, Wagner, são primorosas em demonstrar esse sofrimento torturante.
    Em termos de contos, Romeu e Julieta, de Shakespeare, e Os Sofrimentos do Jovem Werther, de Goethe, foram exponenciais nessa área.
    Agora, a forma de suicídio mais significativa, que mais enaltece o ser humano, paradoxalmente, sem dúvida nenhuma é quando se lava a honra ofendida!
    Os japoneses são mestres com o Haraquiri.
    Claro, nada pode valer mais que a vida, no entanto, uma existência sem honra também não é viver de acordo, então…
    Curiosa essa decisão de se matar, haja vista que no conceito do suicida nada poderá compensar a sua perda, mesmo o mistério de partir para o além, de não saber o que vai encontrar após a vida, se descanso ou mais atribulações.
    Que desespero!
    Penso que deveria haver a partir do Ensino Médio, aulas de psicologia que alertassem os jovens a respeito desta forma de se deixar vencer pelas circunstãncias, pois eles são facilmente influenciáveis e seguidamente entram em depressão.
    As drogas não seriam, assim, uma espécie de suicídio mais brando por um lado e mais terrível pelo outro em razão da dependência?
    Enfim, um aspecto do ser humano muito intrincado, complexo, que ultrapassa o nosso próprio instinto de sobrevivência.

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  6. Parabéns pela reflexão, que se apresenta atual e necessária. Este tema, dentre outros, normalmente provocam as mais diferentes reações, e por vezes moralistas e carregadas de juizos de valor.
    A sociedade moderna, com extrema tranquilidade, transfere ao indivíduo a responsabilidade por tudo o que acontece, ou não, em sua vida, e com o suicídio não poderia ser diferente.
    Esquece-se que o homem é um ser social e histórico.

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    • Cara Rosemeri,

      bom dia.
      Muito obrigado por ler e comentar.
      Sim, este é um tema difícil e, até mesmo, angustiante. Mas é preciso refletir. Suas palavras contribuem nesta direção.

      Abraços e ótimo domingo,

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  7. Nas crises econômicas da Primeira República, os jornais da época, tipo “O Paiz” (Rio de Janeiro) registravam o aumento no número dos casos de suicídios, relacionando-os às dificuldades materiais do suicida, individuais e familiares. No pouco que li do Correio do Povo (Porto Alegre), também desse período há menção aos casos de suicídio. Grosseiramente falando e em tese tem relação com o que o autor citado presume, ou seja, as causas sociais estão presentes. Muitos estrangeiros que aqui aportavam “se isolavam” (na verdade deviam ter encontrado barreiras intransponíveis) para se socializarem e serem aceitos, praticavam o suicídio. O desemprego também era uma constante o que levava obviamente ao desespero, levando ao fim trágico de por termo a vida. Mereceria também análise os casos de suicídio praticados por idosos, geralmente solitários, de origem estrangeira residentes em hotéis e pensões, num período que a Previdência Social era ainda demanda dos Movimentos Sociais. Os suicídios materiais em geral estavam ligados ao sexo masculino, não sendo regra, por outro lado aparecem os casos que atingem a mulher, havendo forte ligação com a moral e costumes da localidade, região e/ou “predominantes”. Gravidez indesejada, expulsão do meio familiar, alcoolismo, abandono pelo marido, levavam a ação fatal. Salvo melhor informação esse tipo de noticia não mais circula na mídia, mas se for (fosse) possível acessar os dados – números do suicídio no Brasil – poderíamos a princípio (hipóteses) verificar o quanto é possível no nosso caso em especifico aproximar a realidade com as teses Émile Durkheim. Pode inclusive que o “sucesso” econômico atual do nosso país também tenha elevado ou diminuído drasticamente o número de suicidas?
    Pedro
    Caxias do Sul

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