Quem são os intelectuais?

“Quando os intelectuais falam dos intelectuais estão falando, na realidade de si próprios, mesmo se por uma curiosa duplicação de personalidade acabam por falar da própria confraria, como se a ela não pertencessem” (Norberto BOBBIO) [1]

A postura sobre o intelectual é carregada de contrariedades. Depende de quem o analisa, e dele próprio. A origem intelectual tem como marco o dia 14 de janeiro de 1898. Nesta data, apareceu em Paris, no jornal L’aurore, o Manifeste des intellectuales, assinado por ilustres escritores como Zola, Anatole France, Proust, a favor de Dreyfus. Entao, o termo já estava incorporado e aceito na acepção vigente. Os intellectuales, segundo Bobbio, viam-se como não-políticos e enquanto homens de letras que combatiam “a razão de Estado em nome da razão sem outras especificações, defendendo a verdade da qual se consideram os depositários contra a “mentira útil”. [2]

Antes de ser assumido pelos dreyfusistas, o termo estava associado à palavra russa intelligentsia, que se tornou comum no idioma italiano:

“No particular contexto da história da Rússia pré-revolucionária, de fato, o termo, usado, ao que tudo indica, pela primeira vez, pelo romancista Boborykin, e difundido nos últimos decênios do século XIX, significava o conjunto (não necessariamente constituindo um grupo homogêneo) dos livres pensadores – que iniciaram, promoveram e ao fim fizeram explodir o processo de crítica da autocracia czarista e, em geral, das condições de atraso da sociedade russa.” [3]

No movimento operário socialista, o termo se tornou célebre a partir de Lenin e sua obra Que fazer? (1902), quando ele difundiu a tese de Karl Kautsky, segundo a qual a consciência socialista do proletariado é exterior a este. O que significa afirmar que não resulta espontaneamente da luta direta entre as classes sociais, mas sim como produto do acúmulo de profundos conhecimentos científicos, algo só possível aos intelectuais. Na base desta polêmica está a idéia, já presente em Platão (A República), de que os trabalhadores necessita de uma vanguarda iluminada, de filósofos e líderes que indiquem o caminho. A estes caberia a tarefa pedagógica de educar, no sentido de levar a teoria revolucionária aos trabalhadores, liderá-los e governar. Eis o núcleo central da concepção de partido revolucionário, portador da razão e demiurgo da história.

De qualquer forma, os intelectuais correspondem a uma categoria mais antiga do que imaginamos. Os doutos, philosophes, literatos, gens de lettre, enfim, os intelectuais modernos, tem como predecessores os religiosos, clérigos e outros que, nos diversos contextos sociais, expressaram o poder ideológico. Como ressalta Bobbio:

“Embora com nomes diversos, os intelectuais sempre existiram, pois sempre existiu em todas as sociedades, ao lado do poder econômico e do poder político, o poder ideológico, que se exerce não sobre os corpos como o poder político, jamais separado do poder militar, não sobre a posse de bens intelectuais, dos quais se necessita para viver e sobreviver, como o poder econômico, mas sobre as mentes pela produção e transmissão de idéias, de símbolos, de visões, de ensinamentos práticos, mediante o uso da palavra (o poder ideológico é extremamente dependente da natureza do homem como animal falante)”. [4]

A palavra, escrita e falada, é o instrumento principal do poder ideológico. Os intelectuais são os que têm as condições propícias para o exercício deste poder. A quem favorecem? Contribuem para reprodução ou a crítica do status quo? Nenhum intelectual é política e ideologicamente neutro. Qual é, portanto, o seu papel social, a sua função?

Referência

BOBBIO, Norberto. Os intelectuais e o poder: dúvidas e opções dos homens de cultura na sociedade contemporânea. São Paulo, Editora UNESP, 1997.


[1] BOBBIO, Norberto. Os intelectuais e o poder: dúvidas e opções dos homens de cultura na sociedade contemporânea. São Paulo, Editora UNESP, 1997, p.8.

[2] Idem, p.123.

[3] Id., p.122.

[4] Id., p.11.

13 comentários sobre “Quem são os intelectuais?

  1. Professor Ozair, em seu texto o denominado conceito ou concepção de intelectual está historicamente associado aos que desempenham a capacidade de ler e escrever numa atitude problematizadora, portanto pensante. Antônio Gramsci, dentre os vários legados da produção intelectual, na perspectiva da assunção política no processo de efetivação de um projeto político de uma sociedade “comunista”, nos deixou a concepção de intelectual orgânico. Assim sendo, Gramsci acreditava que mediante uma educação plena – a “escola unitária” – poderíamos construir esse projeto político de sociedade. Ele fala sobre a necessidade de uma educação plena (ciencia, tecnologia, tecnica ….), enfim, a necessidade de se garantir o direito a educação as crianças, jovens e adultos dos socialmente excluídos. Nesse sentido, na concepção de intelectual orgânico, com qual projeto de educação e sociedade estamos comprometidos? Temos hoje algum modelo de sociedade que não seja sob as bases da exploração e exclusão social? Qual é a nossa concepção de sociabilidade?

    Nesse sentido, concordo com Gramsci quando escreve que todos somos filósofos, pois frente aos fenomenos objetiva e subjetivamente reais temos atitudes problematizadoras. Posto isso, imbuídos do senso crítico, mas destituídos dos recursos “intelectuais”, as classes sociais subalternas ficam fragilizadas.

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  2. Professor Ozaí, eu acho que enquanto houver, como disse uma leitora aqui, a ditadura da universidade sobre a intelectualidade, as ideias tenderão a ser estéril. Por exemplo, pouquíssimos são os casos de pesquisadores que procuram meios como este blog para divulgar seu conhecimento. Muitos aprisionam o saber científico e ignoram a necessidade de vulgarizar a linguagem para levá-lo a mais pessoas.

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  3. O sociólogo Bourdieu, traz duas falas importantes em “A Distinção”:

    a.) Classe média (pequena burguesia):
    “o pequeno burguês se faz pequeno para ser burguês”, isto é, é melhor ser 1 burguês minúsculo (y medíocre) do que ser 1 pobre;

    b.) Intelectuais :
    a fração dominada da classe dominante, ou seja, o capital de que dispõem (conhecimento, talvez) num é suficiente pra lhes dar o poder, só pra colocá-los a serviço do poder.

    Mangas pra pano…

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  4. Gostaria de propor uma reflexão acerca dos intelectuais que estão hospedados nos governos do lulopetismo.Por onde anda Chauí?e o “decepcionado” Weffort e tantos
    outros,adocicados por boquinhas nas estruturas de poder?.Há uma ressalva:o grande
    revolucionário PAULO FREIRE nunca se rendeu aos charmes e bafos do Poder Governamental.Saudações Pedagógicas, ao Mestre Antonio Ozaí.
    José Costa,desde Belo Horizonte

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  5. Antonio
    Bom dia
    A sensação que tenho é que a questão da intelectualidade no Brasil esteja (hipótese) presa sobremodo a Academia. Os que não trilham o meio acadêmico dificilmente conseguem publicar o que estão fazendo ou se tornam referência social. Existem obviamente exceções espelhadas no Cordel, nas letras de músicas, no teatro amador, nas festas populares, onde o sacro se mescla ao profano, nos blocos de rua, na poesia, essa última encontrando guarida na mídia digital, porém essas expressões individuais e populares exigem de seus participes dupla jornada de trabalho, raramente vivendo exclusivamente do trabalho cultural.
    No que tange a pesquisa predomina a ditadura universitária, rompida eventualmente por algumas pessoas extra-meio, sobremodo jornalistas, que desbancando preconceitos se “atrevem” a escrever livros ou publicar artigos, os quais destroem conceitos arraigados no meio acadêmico, causando espécie aos donos da verdade.
    Em regra a uma ansiedade (fome) social pelo acesso a cultura, ao saber, a leitura, somente que os meios são ainda restritos. Quem não gosta de uma apresentação teatral, de música clássica, ainda mais se ao ar livre, um espetáculo de dança feito imaculadamente por nossos filhos? Mesmo com dificuldades financeiras e de locomoção milhares se aglomeram para assistir uma banda apresentar seus hits.
    É nosso parecer que a dita inteligência (maioria) se acomoda diante da grita social. É em geral tolerante com as mazelas do Estado e dos Governantes. Um exemplo apenas são os níveis de investimento em ensino e pesquisa, agregando-se o estupro do desrespeito ao Piso Nacional dos Professores (já uma miséria) de nível fundamental e médio de parte de Unidades da Federação e Municípios. O desleixo com a base na Antártica e o ocaso de nosso Programa Espacial, depõe a favor da omissão.
    Os iletrados, os analfabetos funcionais, os sem-teto, os sem-terra, paleoameríndios, afro-descendentes, pobres, desempregados, tem se mostrado muito mais engajados e participes nas questões culturais e econômicas que nossa auto-denominada intelligentsia.

    Pedro

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    • SR. Pedro,e os demais citado os iletrados, analfabetos funcionais, os sem-teto,os sem- terra, os sem nada, não tem nada a perder por isso vão á luta, nem tempo eles tem mais , apenas têm razão e direito de reclamar. SE pórem, aliado a isso, eles pudessem contar com a parcialidade da inteligencia atribuída á classe citada, a realidade seria evidentemente outra. Ao sr. Antonio Ozai mil congratulações por seu artigo e trabalho neste espaço.

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  6. Caro professor,

    Quanto mais coerente, livre e nobre é o pensamento humano, maior é a coerção que a sociedade lhe impõe.
    Pensar livremente é trabalhoso, solitário e muitas vezes perigoso.
    No entanto, neste mundo opressivo e egoísta, deixar se levar é deixar se domesticar.
    Eu, realmente, admiro os insubmissos.

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  7. Otimo artigo, informativo sobre noçoes e termos que em geral empregados de maneira imprecisa perdem a força que lhes da o conhecimento de sua origem historica datada e dirigida.
    Como ele termina com uma pergunta, à moda dos folhetins publicados nos jornais dessa mesma época (século XIX), imagino que “continua no proximo capitulo”?
    Fica a sugestao,
    abraço e parabéns.

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  8. Um grande desafio é entender, de um lado, o que significa o espontaneísmo das massas e, do outro, a verdadeira potencialidade da palavra do intelectual para a mudança da realidade. Parece que tudo está junto e misturado. A engrenagem se move, o mundo gira e a sociedade se reinventa numa lógica que ultrapassa as histórias individuais, muito embora necessitamos enxergar a realidade a partir das biografias.
    Obrigado, incansável Professor Ozaí! Sempre nos presenteando com reflexões instigantes!
    Um abraço!

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  9. “A palavra, escrita e falada, é o instrumento principal do poder ideológico. Os intelectuais são os que têm as condições propícias para o exercício deste poder.”

    De um modo geral, concordo: os intelectuais tendem a ter condições propícias para exercer o poder da palavra seja escrita ou falada.
    No entanto, os que eu mais admiro são os que à despeito das condições que o cercavam conquistaram poder para sua palavra. Saramago foi um exemplo.
    Também admiro os que não se deixam seduzir pela ideologia das “condições propícias” que lhe deram voz.
    Hahaha…você me parece ser um bom exemplo deste segundo grupo. Pois já li criticas da sua autoria muito pertinentes ao mundo acadêmico.

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    • Aurea,

      boa noite.
      Muito obrigado por ler e comentar. E também por suas palavras de estímulo.
      Sim, também admiro Saramago. E, claro, ele também é um intelectual. E um ótimo exemplo…

      Abraços e ótimo final de semana,

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      • Prezados autor e leitores, Mais uma vez agradecida pela disponibilidade deste ciberespaço. Me parece interessante distinguir alguns fatores da questão em pauta. Quem seriam os intelectuais e qual a sua contribuição para o desenvolvimento da sociedade humana? Se considerarmos intelectual aquele que dominando a palavra, inicialmente oral e posteriormente escrita, adquire poder ideológico sobre seus pares, se poderia extrapolar que quem atualmente domina as técnicas computacionais são intelectuais. Seria adequado supor que quem domina esta nova tecnologia é intelectualmente e ideologicamente superior do que quem não a domina??? Não sei….Penso ser mais adequado considerar intelectual quem utiliza estes eficazes instrumentos ou próteses cognitivas para o próprio aprimoramento volitivo, racional, espiritual e intelectual. Mas quem que faz isso???? Só o próprio pode avaliar….

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