Há muito tenho o costume de anotar. É uma forma de conversar comigo mesmo. Não imaginava que um dia teria a possibilidade de fazer um diário virtual. De onde vem essa necessidade de registrar sensações, acontecimentos e coisas que nem sempre podem ser compartilhadas? Por que não deixar que a mente faça o seu trabalho e sobrevivam apenas as memórias que selecionou? Por que o apego ao passado? Sim, porque registrar é tornar possível o acesso às lembranças que o pensamento já deletou.
Por outro lado, anotações podem ser um perigo. Como escreveu Dostoiévski, há segredos que não contamos nem para nós mesmos. As palavras têm o poder de ferir e abrir feridas que parecem cicatrizadas. Há, porém, vantagens em anotar. Uma delas, quem sabe a mais importante, é aprender com as próprias reflexões. Ao escrever somos obrigados a estabelecer um diálogo interno e, assim, aprender racional e sentimentalmente. É também uma forma de dar vazão a algo que oprime.
Há idéias, pensamentos, etc., que surgem no cotidiano. Anotar é uma maneira de poder retomá-los e desenvolvê-los. O sociólogo Wright Mills, a propósito, sugere que devemos cultivar o hábito de fazer anotações: registros de idéias, notas pessoais, excertos de livros, delineamentos de projetos, etc.[1] Manter um arquivo é, de certa forma, uma produção intelectual, mas é importante retornar às notas, ao “banco de idéias”. Talvez elas contribuam para o desenvolvimento de reflexões mais extensas. A prática de si implica a leitura, mas sem a escrita esta corre o risco de se tornar estéril. Como alerta Michel Foucault:
“Quando se passa incessantemente de livro a livro, sem jamais se deter, sem retornar de tempos em tempos à colméia com sua provisão de néctar, sem consequentemente tomar notas, nem organizar para si mesmo, por escrito, um tesouro de leitura, arrisca-se a não reter nada, a se dispersar em pensamentos diversos, e a se esquecer de si mesmo”. [2]
Mills objetiva contribuir para a reflexão sobre a práxis da pesquisa sociológica. Ele pretende estimular a imaginação do sociólogo. Mas o exercício da escrita também pode ser uma maneira de refletir sobre a vida individual, afinal o intelectual é um ser humano como outro qualquer e, portanto, sujeito às dores e alegrias da condição humana. Anotar pode significar, simplesmente, a necessidade de registro da vida cotidiana, o cuidado de si. Já os antigos tinham o costume de manter arquivos com anotações sobre a vida pessoal, pública, etc., aos quais denominavam hupomnêmata. Segundo Michel Foucault:
“Os hupomnêmata, no sentido técnico, podiam ser livros de contabilidade, registros públicos, cadernetas individuais que serviam de lembrete. Sua utilização como livro de vida, guia de conduta parece ter se tornado comum a todo um público culto. Ali se anotavam citações, fragmentos de obras, exemplos e ações testemunhadas ou cuja narrativa havia sido lida, reflexões ou pensamentos ouvidos ou que vieram à mente. eles constituíam uma memória material das coisas lidas, ouvidas ou pensadas; assim era oferecidos como um tesouro acumulado para releitura e meditação posteriores. Formavam também uma matéria prima para a redação de tratados mais sistemáticos, nos quais eram dados os argumentos e meios para lutar contra uma determinada falta (como a cólera, a inveja, a tagarelice, a lisonja) ou para superar alguma circunstância difícil (um luto, um exílio, a ruína, a desgraça”. [3]
Escrever é se conhecer melhor. As vezes, na solidão da existência, a leitura e a escrita tornam-se as únicas aliadas, uma forma de terapia. “Não é possível cuidar de si sem se conhecer”. [4] Como cuidar dos outros se não estamos bem? Por mais que sublimemos, estamos irremediavelmente sós em nossa própria consciência. Portanto, quanto mais e melhor nos conhecermos, maior a possibilidade de aceitarmos as limitações e as dores inerentes ao viver. Talvez seja o começo da superação…
[1] Ver o apêndice Do Artesanato Intelectual, in: MILLS, C. Wright. A imaginação sociológica. RJ, Zahar, 1982, p. 211-243.
[2] FOUCAULT, M. A escrita de si. In: MOTTA, Manoel Barros da (Org.). Ética, Sexualidade, Política: Michel Foucault. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 150.
[3] Idem, p. 147-148.
[4] Idem, p.269.
Olá Antônio,
A escrita é carregada de significados, quando se escreve, se escreve para alguém.Alguém já disse: “Não escrevo, corro atrás de mim mesmo” (desculpe não recordo a autoria, assim que lembrar confirmo). Sim, concordo com você , através da escrita podemos nos perceber, sentir melhor, porque através da escrita externamos o que sentimos, o que pensamos, o que acreditamos e inclusive, tudo o que negamos.
Grande abraço
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Parabéns Ozaí,
gosto das suas reflexões e aprendo com você.
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Ano 6*** MESTRECHASSOT.BLOGSPOT.COM ***Edição 2161
Vivemos já o primeiro dia útil da segunda metade de 2012. Ontem ao inaugurar este hemi-ano, dizia que julho é um mês muito especial aqui. No dia 30, este blogue completa seis anos de publicação diária.
Dentro da proposta de celebrações está falar da escrita. Hoje trago um excelente texto para inaugurar as comemorações. O autor é Antonio Ozaí da Silva, editor da REA – Revista Espaço Acadêmico, de onde foi retirado, com autorização. Parece ser fácil encontrar identificação com o presente que ensejo hoje para quem escreve diários — em suporte papel — há mais de 28 anos e vem de publicar o livro Memórias de um professor: hologramas desde um trem misto [Editora Unijui, 2012, ISBN 978-85-7429-986-0].
Vale deleitar-se com A escrita e o cuidado de si
attico chassot
http://mestrechassot.blogspot.com
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E não é mesmo verdade?!Tenho o hábito de escrever sobre sensações, assuntos do cotidiano…Escrever alivia a alma e reler os escritos estimula a reflexão e a busca por mudanças. Adorei!
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Muito bom mesmo, nunca havia pensado sobre estas anotações, pela explicação consegui entender que até algo em que nos fundamentamos tem a ver com estas anotações que tem um real significado e que de tempos em tempos mudamos também de opinião sobre determinado assunto ou leitura, a cada vez que se lê, se encontra coisas que não havia notado, confirma-se algumas hipóteses e desfaz-se de outras.
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Ozai: De fato, e’ importante anotar. Mas as vezes a gente tem que deixar um pouco da espontaneidade da uma ideia aparecer sem ter sido escavada ou conjurada do papel. Em todo caso, concordo com voce que ao escrever nos conhecemos melhor, ou pelo menos conhecemos o nosso mecanismo de reflexao.
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Ozaí,
Os posts mais recentes mostram que você tem estado a refletir sobre a escrita. Naturalmente, isso faz com que seus leitores também reflitam sobre a mesma. As anotações a que Mills se refere são absolutamente necessárias, ainda mais em tempos pós-modernos de tanta fragmentação e hiper-realidade. A propósito, como escrever relaciona-se a pensar, lembrei-me de um artigo de Jan-Werner Müller, professor de Ciência Política na Universidade de Princenton, Estados Unidos, publicado na Revista Cult de junho de 2012. Nesse artigo, Müller aborda o fato de os intelectuais terem deixado de pensar soluções para a crise vivida pela União Europeia. Indiretamente, ele sugere que os intelectuais não conseguem pensar soluções porque não escreveram sobre a União Europeia com a intensidade e profundidade que supostamente deveriam ter feito – é como se a União Europeia tivesse sido erguida à revelia dos intelectuais. Em última análise o que Müller aborda está relacionado ao registro dos acontecimentos apontado no início do seu post.
Um abraço,
Francisco Giovanni
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PARABÉNS! PROFESSOR TAMBÉM PENSAVA NISSO SÓ NÃO ESCREVI SOBRE ISSO , MAS VEJO QUE JÁ FEZ TAMBÉM UM POUCO DO QUE EU PENSAVA, GRANDE REFLEXÃO. PARABÉNS E PARABÉNS, SEMPRE NOS SURPREENDENDO.
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Dinalia,
boa noite.
Muito obrigado.
Abraços e ótimo final de semana,
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Texto de grande valia professor. Sempre recebo informações do seu blog e passo para conferir as matérias. Boa semana e parabens pelo texo.
Alexandre Francisco
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