No Hospital

centro_CHMPEm observância à orientação médica, ele chega minutos antes das 13hs., a cirurgia está marcada para as 15hs. Na recepção, a funcionária analisa os papéis para internação e, educadamente, solicita que aguarde. Para ela, é apenas mais um procedimento de rotina. Na sala de espera tudo transcorre como mera repetição do cotidiano. Outras pessoas chegam, telefones tocam, ligações são realizadas, funcionários uniformizados entram e saem por acessos interditados ao público. Cada um faz o seu trabalho. São personas que desempenham papéis vinculados às funções. Sorrisos, gestos, falas educadas, parecem reproduzir o script determinado pela organização funcional como se fosse intrínseco à natureza das pessoas. Mas quem realmente são elas? Quais seus sonhos, desejos, esperanças? Se realizam no que fazem? A remuneração é suficiente para ter uma boa qualidade de vida?

Ele observa a organização hospitalar, como os indivíduos se comportam e se confundem com as suas funções, e compreende melhor as análises do sociólogo alemão sobre a organização burocrática. Quando lhe for permitido ultrapassar as portas guardadas por seguranças, ele compreenderá ainda mais. O funcionamento do hospital é uma aula de sociologia; as atitudes, gestos, falas, etc., dos que dão vida – e dedicam a vida – ao ambiente revelam a humanidade que nos tornam semelhantes e dizem muito sobre a condição humana. De certa forma, ultrapassam os limites do mero desempenho da habilidade profissional. A organização burocrática se orienta pela busca da eficiência, da realização de objetivos funcionais, e se pauta pela impessoalidade, mas é incapaz de anular a natureza humana das relações estabelecidas. Os objetivos declarados até podem mascarar metas não reveladas, mas, seja como for, tudo gira em torno da vida e morte humana.

Ele permanece na sala de espera, aguarda ser chamado para, finalmente, ultrapassar a porta que dá acesso ao corredor e que o levará à enfermaria e, depois, ao centro cirúrgico. A cirurgia é simples, o risco é pequeno, informou-lhe o médico. As anestesias, geral e raquidiana, também oferecem riscos. A fala da autoridade almeja tranquilizá-lo, mas o dever profissional não pode calar sobre as possíveis complicações. Ele leu o Manual de Orientação para Pacientes e foi “devidamente informado (a) que a operação pode apresentar riscos que incluem: necessidade de conversão para a operação aberta (laparotomia ou corte maior), hérnia, infecção, sangramento, perfuração de vísceras, lesão da via biliar principal (colédoco), risco anestésico, risco de reações alérgicas a medicamentos e risco de vida, entre outros”. A despeito dos termos obscuros para o leigo, a linguagem médica especializada não deixa dúvidas: por mais rotineira e simples que seja o tipo de cirurgia a que será submetido, há risco de vida. A expressão “entre outros” indica que, inclusive, há possibilidades não anunciadas e, quiçá, nem previstas. Não por acaso, há um termo de consentimento a ser assinado. Desnecessário, diga-se de passagem, pois o paciente, no pleno exercício de suas faculdades mentais, já consentiu verbalmente.

As palavras são esclarecedoras – e estarrecedoras! O médico anestesista também cumpre o seu papel: pergunta, responde às dúvidas do paciente, esclarece e tenta, com a seriedade que lhe é peculiar, tranquilizar, mas expõe com clareza os riscos. Tudo pode correr bem, e geralmente é o que acontece. Mas, é preciso que o paciente tenha consciência dos riscos e consinta. O anestesista entrega uma folha, solicita que seja lida com atenção, assinada e entregue no ato da internação. Os termos são ainda mais assustadores. Mas não há retorno, a cirurgia é necessária e os riscos devem ser assumidos. Ainda que compreenda a necessidade dos profissionais em esclarecer tudo, transparece a impressão de transferência de responsabilidade para o paciente. Algo deu errado?! Você sabia! Mas do que adianta ao morto ter o conhecimento de que poderia morrer?!

O tempo passa! Ele, pacientemente, espera! É informado de que a demora se deve à inexistência de leito disponível na enfermaria. Ele permanece na recepção. O lugar é amplo, com cadeiras confortáveis e TVs localizadas à sua frente e às suas costas. Ele tenta concentrar-se e assistir ao documentário sobre ciência e tecnologia. Termina o programa, começa outro. Ele levanta-se, anda pelo recinto, observa as fotos na parede sobre a história do hospital, caminha para fora, retorna e senta-se. Está tranquilo, mas a espera alonga-se e anuncia a ansiedade. Finalmente, escuta o seu nome. É-lhe explicado os procedimentos e solicitado a assinar os papéis da internação. Um funcionário acompanha-o até o quarto. Ele cumprimenta o segurança e adentra ao espaço interdito até aquele momento.

Ele caminha e observa o ambiente. Chega à enfermaria, a enfermeira indica onde ficará e entrega a roupa que usará para a cirurgia e nas próximas horas. Ele dividirá o espaço com dois pacientes: um à sua direita aguarda a cirurgia no rosto – num acidente de carro quebrou o osso frontal; outro, à sua esquerda, sofre de infecção urinária. Ambos, apesar das circunstâncias, mostram-se simpáticos e bem-humorados; perguntam sobre a cirurgia e, diante da resposta, tranquilizam-no. Inclusive, o senhor à sua esquerda já fizera a mesma cirurgia que ele fará e tudo transcorrera bem! A solidariedade emerge espontaneamente!

Ele escuta atentamente o relato deles, feito com o bom-humor típico de quem caçoa da própria situação. Comparado ao que espera o senhor à sua direita, sua cirurgia tem riscos menores. A sabedoria popular alimenta o conformismo amparando-se no argumento de que pode ser pior, muito pior! Olhe ao seu redor e, muito provavelmente, encontrará alguém sob circunstâncias piores e você até se culpará! De qualquer forma, por mais simples que sejam determinadas cirurgias, comparadas com outras, sempre há riscos! E cada um reage e sente conforme a sua natureza. O que para um é drama, tragédia, pode ser uma oportunidade de aprendizado para o outro e até parecer exagero aos olhos da sensatez!

Quem o vê pode até imaginar que esteja ansioso, mas ele permanece tranquilo. A enfermeira verifica a pressão arterial. Está bem! Ao vestir a roupa que lhe foi entregue parece que também vestiu o papel que deve desempenhar: o de paciente. A própria palavra indica o que se espera dele! Minutos depois, as enfermeiras chegam com a maca que o levará ao centro cirúrgico. Sua esposa, junto a ele desde os primeiros instantes, acompanha-o. Chegam à porta do centro cirúrgico, ali é entregue a outras pessoas que trabalham no setor. É o momento da despedida. Ele sabe que ao ultrapassar aquela porta estará, definitivamente, nas mãos do médico e da sua equipe – e de Deus, lhe dirão para corrigir seu lapso de fé! Quando, novamente, passar por aquela porta, em que circunstâncias estará? Permanecerá vivo? A despedida é um até logo ou se revelará definitiva? A verá de novo? Seus pensamentos passam com a velocidade dos segundos, não há mais tempo para se deter! Fecham as portas, e parece que o mundo lá fora se fechou para ele! Neste momento, ele se lembra da sua filha diante de portas como estas, em outro hospital e cidade. Apesar do tempo passado, a imagem é nítida e ele recorda de como se desesperou ao ver-se impossibilitado de acompanhá-la. Separado dela, só lhe restava aguardar o retorno da sala de cirurgia. Como esta espera foi angustiante! Naquela oportunidade, por mais que desejasse afastar de si os pensamentos sombrios e ser otimista, eles insistiam em permanecer. Ele temeu pela vida da filha e encontrou no choro o recurso para se acalmar! No final, tudo transcorreu bem e ela retornou ao seu convívio.

Deixam-no na antessala. Ali, pessoas com uniformes de cores diferenciadas conversam e cuidam dos que passaram por cirurgias. Elas tremem de frio e são aquecidas com cobertores. Gritos no recinto indicam trabalho de parto. As enfermeiras comentam, mostram-se descontraídas. É o trabalho delas, a rotina.

Ele vive intensamente a experiência, seu olhar observa atentamente tudo o que ocorre à sua volta. Presta atenção ao que é falado e afasta de si os pensamentos negativos. Uma voz feminina pergunta se está tudo bem, ele responde afirmativamente. Ele é medicado, provavelmente um sedativo. O médico anestesista apresenta-se e faz algumas perguntas de praxe – não é o mesmo médico que o consultou dias antes da cirurgia –, explica o procedimento e retira-se.

Finalmente, levam-no para a sala de cirurgia. Sua pressão arterial é verificada mais uma vez. Está boa! A enfermeira procura sua veia. Uma, duas tentativas e nada. O enfermeiro intervém e tem sucesso. O médico anestesista ironiza e comenta que a cirurgia é precedida pela acupuntura e que outras agulhas serão enfiadas. A enfermeira permanece séria e aparenta não ter gostado da brincadeira. O paciente ri e descontrai-se. O médico aplica a anestesia raquidiana nas costas. Ele sente e percebe a dificuldade de penetração da agulha. Felizmente, não vê o gesto nem o tamanho da agulha.

Ele dorme! Seu corpo, sua vida, está ao dispor do médico e equipe. Nada vê, nada escuta. Se algo acontecer de errado, a aplicação da anestesia terá sido sua última experiência no mundo dos vivos. Felizmente, tudo transcorre normalmente. Ele não recordará se teve frio e foi coberto, nem verá seu corpo atravessar a porta do centro cirúrgico de volta ao quarto da enfermaria. Ele acorda quando o transferem da maca para o leito. Alegra-se ao reconhecer as vozes e sentir-se vivo!

Sob medicação ele dorme, acorda, pensa muito, e dorme… Em suas reflexões, ele percebe que não temeu a morte, mas sim a ausência da vida. Nos momentos que antecederam a cirurgia, ele olhou na estante os livros ainda não lidos e perguntou-se se teria a oportunidade de lê-los; considerou sua rotina e temeu não retomá-la; brincou consigo ao visualizar a possibilidade de não retomar os textos que publica, a participação nas redes sociais e suas atividades editoriais – mas quem se importa!; pensou nos escritos dos seus alunos ainda não lidos e como ficaria a situação deles com a indefinição das avaliações. Lembrou-se, então, do conselho da colega que, com o intuito de tranquilizá-lo, disse: “A cirurgia é de risco mínimo, mas é aconselhável deixar tudo encaminhado”. Ele não é um exemplo de auto-organização, nada encaminhou.

No entanto, seu maior receio foi não mais rever as pessoas que ele ama, as que o amam e os amigos sinceros. Ao despedir-se, temeu não reencontrá-las. Seu maior medo era não mais poder estar presente em suas vidas. O que mais o assustava era a impossibilidade do reencontro, de compartilhar os momentos que a vida permite. Assim, ainda que os médicos afirmassem os riscos e os pensamentos lúgubres teimassem em percorrer a sua mente, ele procurou alimentar a certeza de que retornaria. Sabia, no entanto, que não dependia dele! No final de tudo, suas reticências arrefeceram e deu lugar à admiração pelo médico e profissionais da saúde. Especialmente, após saber e ver o resultado positivo da cirurgia no homem deitado à sua direita. Sobrevivemos! A vida, enriquecida pela experiência vivenciada no hospital, continua!

15 comentários sobre “No Hospital

  1. Excelente texto, retrata as vivências vividas pelas pessoas nos hospitais. Penso nos companheiros que enfrentam os grandes hospitais públicos,jogados nos corredores, a procura de UTI (faltam médicos, medicamentos e a afetividades daqueles que atendem), a saúde no Brasil estar um cau’s.
    Laudicéia

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  2. Cirurgia é um momento muito dificil de cada um de nós que não queremos passar mas teremos quando é preciso. Esu passei por isto sete vezes, operei em vinte anos de varias cirugias e estou aqui vivo!!!. Já operei e tirei o Baço, tirei 2 ernias, operei de diverticulite e nesta tirei 40 centimetros do intestino e tirei a visicula, operei da prostata e agora por último, operei do coração em dezembro de 2012, Há!! tinha me esquecido, tive um acidente de carro e quebrei a segunda vertebra da coluna, mas hoje estou bem. Hoje estou forte e trabalhando!! é a força de Deus porque não chegou minha hora!! Parabens pelo seu texto. Te conheço desde o Treze de Maio quando fui sindicalista e tive aula com voce sobre a história do movimento operario no Brasil. Um Abraço, Paulinho.

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  3. Prof. OZAÍ – A humanidade do seu texto me comoveu. Tenho verdadeiro horror de hospitais. Evito-os o quanto posso. Não tenho medo de doenças, vírus, bactérias, nada disso, mas da falta de consideração humana dos médicos e alguns outros(as) profissionais de saúde, que me me choca e me deprime. E, saiba que sou uma pessoa otimista e alegre. Há um ano e dois meses fiz uma cirurgia no olho esquerdo através do plano de saúde, que meu marido paga religiosamente todo mês e, para os padrões brasileiros, não é nada acessível. Como ambos temos mais de 60 anos, não podemos prescindir de atendimento médico e odontológico, então sacrificamos lazer, viagens, cultura, etc. Entretanto, mesmo com pagamento da mensalidade, quando é necessário alguma intervenção cirúrgica por pequena que seja, sempre há um “X”, uma cota que o médico cobra “por fora”, senão, como me disse certa vez um desses arrogantes: “Te vira com o SUS, vai para a fila dos coitados!” Para conseguir consulta com cardiologista razoável, neurologista., etc. é uma verdadeira via-crúcis. Está ficando quase como o SUS. Falei-lhe que tenho alergia à anestésicos e precisaria arranjar um bom anestesista. devo dizer que neste ítem, tudo correu bem, pois o Dr. André Schmidt é um ótimo médico:anestesista: competente, atencioso e humano. Ficou sempre comigo e quando tive uma taquicardia e a pressão arterial subiu, ele está firme ao meu lado. A enfermeira Creusa e um outro colega também foram excelentes durante a minha estada na recuperação. A clínica também é muito boa, em todos os sentidos. O que foi desagradável e triste é que o médico oftalmologista apareceu duas horas depois da hora que marcou comigo. ( e não foi só para mim que isso aconteceu). Na consulta do dia seguinte, entreguei-lhe o cheque e notei que após o pagamento, tendo “a grana” garantida, o tratamento comigo foi bem displicente, bem desinteressado. Parecia que a criatura não queria nunca mais me enxergar. Aliás, irá realizar o seu desejo, pois como nasci com deficiência visual e já passei por oito cirurgias, anualmente devo consultar o oftalmo. Porém, tenham certeza que este dito cujo, se Deus quiser, nunca mais. é mercenarismo para o meu gosto e olhe que concordo que todo profissional, seja de que área for merece ser bem renumerado. Abraços e muita saúde, nobre professor..

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  4. A máquina de reduzir o sujeito-corpo em organismo mergulhado na rotina de outros. Hospitaleiros que vão guardar o silêncio. Porque diante dos corredores vazios de olhares costumeiros. A intimidade exposta anestesiando escolhas. Entra a angústia metafísica estando lá; a frágil estrutura numa aposta insana pelo amanhã. Um contrato que protela por meio de subterfúgios e jogos químicos e biológicos. Um acaso impactante, riscos mínimos com o máximo de receios. Numa tentativa eterna de reter a rotina que anula o olhar encantado pelo medo da perda de si diante da fragilidade que expõe a triste e tão comum condição humana, reedição maravilhosa do carrossel, que nunca para; mesmo quando saímos dele.

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  5. Puxa, Ozaí, só você mesmo para extrair tantos elementos sociológicos de uma ocasião assim! Estar em contato com as suas ideias é um constante e valioso aprendizado, único seguramente.
    Ótimo saber que está tudo bem.
    Grande abraço. Saúde sempre.

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  6. Olá Ozai!

    Sou enfermeiro e sempre leio os textos.
    O hospital é realmente um vasto campo sociológico.
    Me fez pensar sobre as nuances e os medos de paciente que diuturnamente passam por nossos cuidados.

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  7. Maravilhoso! Texto que retrata o empoderamento médico, o anestesiamento das equipes de saúde e de atendimento e imensidão da subjetividade do atendimento hospitalar!

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  8. Parabéns Ozaí
    Seu artigo é de tamanha riqueza de detalhes e provocador de reflexão. Ele tem momentos que leva o leitor a parar, reler, parar, pensar, cria expectativas e questionamentos, uma verdadeira aula por um verdadeiro professor.
    Obrigado e abraços, Antonio

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  9. “(…)Ele sabe que ao ultrapassar aquela porta estará, definitivamente, nas mãos do médico e da sua equipe – e de Deus, lhe dirão para corrigir seu lapso de fé! (…)”. Destaquei esta frase meio perdida na rememoração do caminho para a cirurgia. Seria um sinal que o paciente estaria se rendendo a ter fé em Deus? Ainda bem que Deus é lembrado, pelo menos nestas horas incertas…Valeu, Ozai. Valei-me Deus. abraço. Raymundo Lima

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  10. Professor Ozaí, este seu Blog e os artigos nele veiculados são de incomensurável valor. Tem contribuído grandemente para as minhas reflexões e meus conhecimentos. Grande abraço! Ronaldo Lima Lindote. nalasy@gmail.com

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  11. SENSACIONAL, FORTE PARECIA QUE ERA EU QUE IA PARA A SALA DE CIRURGIA. Parabéns! professor Ozaí. Sempre nos dando bons textos para aprendizagem e reflexão.

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  12. Ozai, sua crônica me fez entrar com voce no hospital e me arrepiar com os termos técnicos do compromisso assinado pelo paciente, mas também aprender da sua experiência humana e sociologica. Mais uma bela reflexao que me chega no domingo de manha.
    Um abraço.

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