Talvez não seja aconselhável iniciar um texto com um título taxativo que define a posição política do autor. Por um lado, há o risco de ser julgado pelos leitores apressados, cuja leitura não avança além do título. Isto não é algo que preocupe os que escrevem apenas para os convertidos, ou seja, aqueles que partilham da mesma fé, da mesma ideologia. Também não é motivo de preocupação para aqueles que defendem verdades absolutas, os panfletários e os que fazem proselitismo. Quem almeja converter e/ou reforçar convicções isola-se em seus próprios argumentos, em sua visão de mundo. Tais pessoas são afeitos à polêmica, mas na prática negam o diálogo. Como escreveu Foucault, a polêmica é uma “figura parasitária da discussão e obstáculo à busca da verdade”. Ela “define alianças, recruta partidários, produz a coalizão de interesses ou opiniões, representa um partido; faz do outro um inimigo portador de interesses opostos contra o qual é preciso lutar até o momento em que, vencido, ele nada mais terá a fazer senão se submeter ou desaparecer”.*
Em tempos de acirramentos das posições políticas e ideológicas, de definições nítidas de campos que se opõem em fronteiras rígidas, são destruídas as pontes que possibilitam a communicatione, delimitam-se trincheiras intransponíveis e são implodidas as condições para o diálogo. Quando cada um fecha-se em torno das próprias certezas, torna-se impossível ouvir a fala do outro, seus motivos e suas razões. A reflexão crítica e auto-crítica é substituída pelas dicotomias maniqueístas que apelam para a simplificação da realidade, a redução ao “nós” versus “eles”, o “bem” contra o “mal”. Neste contexto, a polêmica tende a suplantar o diálogo:
“O polemista prossegue investido dos privilégios que detém antecipadamente, e que nunca aceita recolocar em questão. Possui por princípio, os direitos que o autorizam à guerra e que fazem dessa luta um empreendimento justo; não tem diante dele um parceiro na busca da verdade, mas um adversário, um inimigo que está enganado, que é perigoso e cuja própria existência constitui uma ameaça. O jogo para ele não consiste, portanto, em reconhecê-lo como sujeito com direito à palavra, mas em anulá-lo como interlocutor de qualquer diálogo possível, e seu objetivo final não será se aproximar tanto quanto possível de uma difícil verdade, mas fazer triunfar a justa causa da qual ele é, desde o início, o portador manifesto. O polemista se sustenta em uma legitimidade da qual seu adversário, por definição, está excluído.” **
Se as palavras acima tem sentido, é duvidoso que o leitor polemista tenha nos acompanhado até aqui. Mas, contemos com a sua generosidade e a esperança de que a razão seja mais forte do que os preconceitos. Continuemos!
Por outro lado, um título que anuncia posicionamento também pode resvalar para o campo da polêmica. Não é este o objetivo. Não tenho a pretensão de convencer corações e mentes da minha “verdade”. Parto do princípio de que cada um tem autonomia e esclarecimento para se posicionar diante da realidade política e responsabilizar-se pelas consequências das suas decisões. Deve ser respeitado. Afinal, somo adultos, temos maturidade para decidir e escolher nossos caminhos, somos seres racionais. E ainda que este princípio seja equivocado, não me cabe mostrar o caminho a seguir, fazer cabeças. Não quero impor a “verdade”, nem conquistar seguidores. No diálogo, o argumento contrário também é legítimo.
Contudo, legitimar o outro não significa eximir-se de assumir posição. Há momentos na vida em que a pretensão à neutralidade é tão ou mais prejudicial do que o risco de equivocar-se. Exerço o direito legítimo e democrático de tomar posição. Estou convencido de que não há legitimidade na condução do processo contra a presidenta Dilma. Concordo que a premissa da aceitação da denúncia por parte do presidente do Congresso Nacional peca pela motivação mesquinha e vingativa de um indivíduo hipócrita, comprometido até a medula com transações que atropelam as mais simples exigências do comportamento adequado ao cargo. Os que julgam estão sob julgamento.
Trata-se tão somente de um processo de cunho nitidamente político que tergiversa sobre a legalidade constitucional; uma nova modalidade de golpe que atropela a Constituição, em nome desta; uma forma de negar a democracia, parecendo afirmá-la. Não é novidade: na política a linguagem não é neutra e está sempre em disputa. Além disso, para além da parcela da população que legitimamente se opõe ao governo Dilma e aceita a tese do impeachment, é preciso levar em conta as forças sociais que se perfilam de um lado e de outro. Uma posição que tem o apoio e suporte financeiro da Fiesp, do grande empresariado e dos setores mais conservadores da sociedade – inclusive dos que não se envergonham em pedir o retorno da ditadura militar – mostra bem o seu significado político e social. Também é sintomático a forma como o vice-presidente antecipa-se aos fatos e não se envergonha de conspirar abertamente para chegar à presidência pela via indireta, uma pessoa a se temer pelo comportamento adotado na conjuntura política.
Mas também estou convencido de que a polêmica em curso, que divide os lados em “contra” e a “favor” do impeachment, não corresponde à complexidade da realidade política e social. Há uma crise de legitimidade do governo canalizada politicamente. A economia é, novamente, a explicação mais plausível! Estivéssemos outro momento econômico mais favorável e dificilmente os acontecimentos teriam evoluído no sentido de votação do impeachment. É de se pensar como um governo que iniciou sua gestão à sombra de um presidente com maior aprovação nunca antes vista na história deste país, chegou a esta situação. Merece reflexão o fato de que vários dos deputados que votarão pelo afastamento da presidenta compunham sua base de sustentação e, inclusive, ocupavam postos nos ministérios e outros setores da administração pública. É de se pensar sobre a política econômica do governo, em contradição com o discurso da campanha eleitoral e na contramão dos movimentos sociais que a apoiam. Merece reflexão os estragos que a tese da governabilidade (alianças políticas com o que de pior foi produzido na política brasileira), adotada desde os governos Lula, a política econômica em curso e o envolvimento das principais lideranças do PT nas denúncias de corrupção causaram à esquerda em geral. De certa forma, Dilma, o PT e seus aliados, estão colhendo os frutos da política colocada em prática desde os mandatos do ex-presidente Lula.
Contra o impeachment, mas sem o maniqueísmo dos missionários da intolerância que agem como profetas do Apocalipse, anunciam o caos e instilam o ódio recíproco. Contra o impeachment, mas com a recusa às simplificações, às dicotomias dos que mais parecem chefes de torcidas organizadas a brandir suas verdades mutuamente excludentes. Contra o impeachment sim, mas sem a ingenuidade dos que perfilam-se em lados opostos e acreditam que seus líderes estão acima das críticas e representam a salvação. Contra o impeachment, mas com a clareza de que isto não significa apoio ao governo Dilma, nem aceitação da alternativa política representada pelos seus mais notórios opositores. Contra o impeachment, enfim, mas sem ilusões! Pois, aconteça o que acontecer, a vida impõe a continuidade da luta!
* FOUCAULT, Michel. “Polêmica, política e problematizações”, in FOUCAULT, Michel. Ética, Sexualidade, Política; Organização e seleção de textos, Manoel Barros da Mota. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. (Ditos e escritos; V), p. 226.
** Ibidem, p. 225-226.