Em “Os ensaios”, Michel de Montaigne nos ensina a filosofar sobre a morte, ou seja, antecipar-se ao nosso destino comum com o exercício da meditação. Em outras palavras, aprender a morrer. “Diz Cícero que filosofar não é outra coisa senão preparar-se para a morte. É assim porque, de certo modo, o estudo e a contemplação retiram nossa alma de nós e a ocupam separada do corpo, o que constitui certo aprendizado da morte e tem semelhança com ela; ou então, é porque toda a sabedoria e a razão do mundo se concentram, afinal, nesse ponto de nos ensinar a não ter medo de morrer”, escreve Montaigne.[1]
Excelente filosofia! Mas quem de nós será capaz de seguir este caminho? Por que consumir o tempo em meditações filosóficas se este não nos pertence? Não é mais sensato usufruir o tempo no ato de viver, ainda que as condições não sejam as mais propícias? Se, a qualquer tempo, a morte nos alcança, não será mais prudente afastá-la do nosso pensamento e nos limitarmos a viver?!
O medo de morrer é tão humano quanto a certeza de que não há escapatória à sentença da morte – mas também é social e culturalmente construído. Para a maioria das pessoas a melhor forma de enfrentar a morte é não pensar nela. Vivemos como se eternos fossemos, muito embora saibamos que a morte nos espreita, que poderá ceifar a nossa vida a qualquer momento. Vivemos como se o dia seguinte, o futuro nos pertencesse – especialmente na juventude. Mas nenhum de nós, independente da idade, tem a certeza absoluta de que estaremos vivos no segundo seguinte. Se é certo que em determinadas circunstâncias padecemos da expectativa da morte, ela sempre pode surpreender. Portanto, convenhamos, talvez seja melhor não se consumir em meditações. De fato, em lugar de meditar sobre a morte e enfrentar a nossa condição humana finita, preferimos os artifícios que nos permitem continuar vivendo alheios à morte que nos cerca. Em suma, o nosso medo e a recusa a aceitar a morte nos induz ao recalque.
Mas a morte não se ausenta. Ela insiste em se fazer presente em nosso cotidiano, nos nossos sonhos, na realidade. Não há como desconsiderá-la. Certo, os seres humanos são criativos e descobrem novas formas de recalcamento. A morte desfila diante da vida, transformada em estatísticas, banalizada. Em meio à tragédia, somos os sobreviventes. “O momento de sobreviver é o momento do poder. O horror ante a visão da morte desfaz-se em satisfação pelo fato de não se ser o morto”, afirma Elias Canetti.[2] Sim, ainda que a morte de milhares nos sensibilize, sobrevivemos. Não se trata de julgamento moral nem de aceitar a banalização dos números no noticiário. Não é mera estatística, cada ser humano cuja vida é ceifada expressa uma história específica com relações familiares, de amizade, etc. Há os que falecem e deixam saudades, projetos inacabados, afetos, etc. De certa forma, os que ficam também morrem em certo grau, embora permaneçam vivos. Mas há também as mortes que aliviam o fardo dos que permanecem vivos e as que apenas registramos, sem saudade e sem afetos. De qualquer forma, não sejamos hipócritas: a morte só nos afeta diretamente quando são os nossos mortos. Mesmo então, a dor e o sofrimento que nos dilaceram precisam ser superados para que possamos continuar vivendo.
Somos os sobreviventes! Mas não nos iludamos, estamos na fila. Não há recalque que nos livre da morte anunciada. “A morte é o fim de nossa caminhada, é o objeto necessário de nossa mira; se nos apavora, como é possível dar um passo à frente sem ser tomado pela ansiedade?”, afirma Montaigne. Sabemos o quanto é difícil dar este passo. “O remédio do vulgo é não pensar nela”, e talvez esta opção seja a mais sensata. [3] Contudo, já que a morte é inevitável e imprevisível, talvez seja melhor aprender a conviver com ela. Talvez o filósofo tenha razão. Afinal, se conseguirmos fazer as pazes com o inexorável, pode ser que vivamos em paz. Aprender a morrer significa, sobretudo, ter a possibilidade de viver bem. Será?
[1] MONTAIGNE, Michel de. Os ensaios: uma seleção; organização de M. A. Screech; tradução Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 60.
[2] CANETTI, Elias. Massa e Poder. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 227.
[3] Montaigne, op. cit., p. 63.
** Este texto foi lido por um grupo de interlocutores(as), pessoas que considero especiais e que nutro muito apreço. Muito obrigado pela leitura crítica, correções e os comentários instigantes. Claro, os possíveis equívocos são da minha inteira responsabilidade.
“Vivemos como se eterno fossemos, muito embora saibamos que a morte nos espreita, que poderá ceifar a nossa vida a qualquer momento.”
“Vivemos como se ETERNOS fossemos, muito embora saibamos que a morte nos espreita, que poderá ceifar a nossa vida a qualquer momento. “
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Boa tarde. Obrigado. Abraços
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Boa reflexão Ozaí. Embora cônscios da morte, realmente não nos preparamos para ela. E, nestes tempos de pandemia, é perceptível uma banalização da morte por diferentes sujeitos e segmentos sociais.
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Bom dia. Muito obrigado por ler e comentar. Abraços e tudo de bom
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