Reflexão sobre a morte

Virgilio de Almeida (1943-2012)

em memória do companheiro Virgilio de Almeida

Vivemos como se fossemos eternos. Ilusão que alimentamos das mais diversas maneiras: desde a recusa, consciente ou inconsciente, de pensar na morte à crença religiosa na ressurreição, no arrebatamento, etc. O interessante é que mesmo os crentes mais fervorosos não querem morrer. Claro, há os suicidas que se imaginam mártires a serem recompensados no além. De qualquer forma, exceto os fanáticos que encontram autojustificava para se matarem e ceifarem a vida dos demais, e os suicidas em geral, o ser humano parece temer a morte. E, paradoxalmente, ele é o único animal que tem consciência da finitude.

Vivemos o cotidiano e a vida parece em ordem, receamos o caos. No fundo, tudo o que queremos é que os dias se sucedam como sempre. Sentimo-nos seguros com o reproduzir do dia-a-dia. Agimos no presente, realizamos atividades, nos relacionamos com as pessoas com a certeza de que as veremos amanhã e que elas nos verão. Fazemos projetos, cultivamos utopias e até sonhamos que um outro mundo é possível. Os dias parecem reproduzir-se na ordem natural das coisas e do viver. Lemos, ouvimos e vemos notícias sobre mortes, mas tudo parece muito distante de nós. Se pararmos para pensar, perceberemos o quão frágil é a sensação de estarmos seguro, de que o amanhã naturalmente nos pertence. Então, nos recusamos a refletir e afastamos de nós qualquer pensamento que tumultue, nos apegamos ao agora como se fosse eterno.

Há dias que parecem ser apenas mais um dia na vida. O viver não apresenta surpresas que desequilibrem e, apesar de tudo, nos imaginamos no controle. Mas eis que a morte se aproxima e nem a percebemos. Seu abraço mortal se propaga e a sentimos tão presente que desfalecemos. A sensação de impotência diante do destino manifesto toma conta do ser, torna-se cada vez mais nítido o quanto frágil somos. Eis que tudo parece sem sentido, pois de que adiantam preocupações, projetos e esperanças, se não escaparemos da sua sentença? Se partirmos, e partiremos, o que fica? Qual é o nosso legado? Mas por que se preocupar se estaremos mortos?

A morte nos faz pensar sobre nós mesmos, os que conhecemos e o ser humano em geral. Ela nos ensina e mostra o quanto é risível a arrogância humana! Será que o arrogante percebe o ridículo da sua atitude? Talvez seja uma forma de mascarar os medos mais profundos que habitam a mente e a alma. Talvez a prepotência seja a expressão da insegurança psíquica e uma maneira do indivíduo sentir-se ou parecer seguro. A mente humana oculta mistérios indecifráveis! Não obstante, nem mesmo o humano mais poderoso está isento dos sofrimentos da alma. A face decrépita do poder não tarda a se mostrar e a morte espreita.

O paradoxo do viver não é a morte, o morrer. Talvez seja mais sensato encará-la como natural e preparar-se da melhor forma para recebê-la. A sabedoria, como ensina Montaigne, está em aprender a não ter medo de morrer. Meditar sobre a morte, aprender a conviver e aceitá-la é parte do aprendizado de viver bem.[1] O que é paradoxal não é a morte em si – até porque ao morremos cessam todos os dilemas – mas o fato de que, quanto mais vivemos mais a morte se apresenta a nós na forma de sofrimento e pesar pela partida dos que amamos, temos laços de amizade e admiração. Sim, porque a longevidade é testemunha do viver e do morrer.

A natureza nos prega peças trágicas. Imaginamos que os filhos devem enterrar os pais – assim deveria ser o ciclo da vida. Já testemunhei situação em que o pai velava o filho adolescente e nunca esqueci seu abraço trêmulo de emoção. Não há palavras que expressem tamanha dor. Há mortes que não compreendemos, que são inaceitáveis. Há situações em que os vivos gostariam de estar no lugar dos mortos.

Há dias em que a morte nos surpreende e nos recusamos a acreditar na realidade. Fica a tristeza, a saudade e a certeza de que compartilhamos o mesmo destino. Talvez Montaigne esteja certo e o maior desafio da vida seja aprender a aceitar a morte! Contudo, se concluirmos pela razão, sabemos pelo sentir o quanto é difícil aceitá-la.


[1] Ver “Que filosofar é aprender a morrer”, in MONTAIGNE. Os Ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p.59-83.

13 comentários sobre “Reflexão sobre a morte

  1. Ao ler o artigo lembrei de um pensamento do Gilberto gil. “Este mundo é inconcluso além há continuação. Invisível como a música absoluto como o som” .

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    • Eu estou a ouvir o CD Quanta, de Gilberto Gil, e nele consta que esse pensamento pertence a Emily Dickinson, poetisa norte-americana. Esses versos são tão inteligentes quanto aos versos e o trabalho
      do Gil.

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  2. Se dissesse algo previsivel e conhecido pelos notaveis catedráticos, dir-me-iam que parafraseio e imito conceitos e pensamentos primevos; de homens que postularam a filosofia que seria presunçosamente hodierna. Todavia, se lhes disser algo jamais pensado, insinuar-me-ão que sou religioso idiossincratico. O que dizer então? Universos sobrepostos, milhares de galaxias justapostas, dentre as quais figura a via lactea – qual seja: a nossa, com um planeta com “vida” biologica amplamente justificável pelos sistemas solares e lunares que implicam em produção e destruição. Um teatro com seus personagens e histórias, civilizaões inteiras que se perdem no curso dos tempos e vidas ceifadas como se nada fossem ou representasem. Quantas tragédias nao aconteceram no mundo ( sistema de coisas ). A vida é o pulsar e a morte o fôlego. Não me refiro a proposição espírita. Deus está muito além que quaisquer expectativas humanas. Não ha predileção. Somos todos massa d manobra para uma evolução dimensional. Uma depuração do caos; e tudo passa pela nossa mente, sem a mente não haveria a canalização da energia. O universo ou o poder expectroso do que existe perpassa pela mente, esta abre-se pelos sentidos, ligados pela alma. A alma é uma identidade que assimila e reproduz ao estado exterior o que na verdade esta adormecido. Busca-se conhecimento, acha-o; compartilha-o, evolui-se! Somos engrenagens de um grande relógio que dá sentido ao tempo. Amamo-nos pq somos ligados imediatamente aos sentidos proximos e isso “nos faz mais humanos” como se o “humano” fosse amoroso, fraterno e solidario. A história mais remota não nos conta isso – pelo contrario! Estamos nos organizando ( inconscientemente ), para uma nova era? Ou para nos separar dos demais seres que julgamos serem incompletos por nao cumprirem as Leis? O amor é necessário para suprir uma enorme carencia filial. Viver é aceitar a falibilidade de nao termos sido capazes de cumprir o que o subsequente cumprirá quando da nossa morte biológica. Pq ninguem é completo! Espírito? Com certeza o Há! Inescrutável, insondável que nem mesmo Platão, Aristóteles ou Sócrates puderam decifrar. Espírito para espirito, matéria para a matéria orgânica ou inorgânica. Deus existe, mas Ele jamais se submeteria ou se deixaria conhecer pelo homem. A morte é estritamente necessária, sem ela a vida espiritual perderia seu fulgor. (Este texto nunca termina).

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  3. ” O Único meio de entender a morte é admiti-la,sim nosso ente querido morreu! Mas isto não significa que iremos morrer também com ele. Temos de juntar os pedaços e seguir em frente”.

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  4. Ozaí,

    Parabéns pelo texto e pela homenagem ao professor Virgílio.

    Bela passagem: “(…) quanto mais vivemos mais a morte se apresenta a nós na forma de sofrimento e pesar (…) porque a longevidade é testemunha do viver e do morrer.”

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  5. Perdi meu pai recentemente e comecei a me interessar por assuntos relacionados à morte, para tentar entender o momento de dor que eu e meus famililiares estamos passando, neste sentido dataca-se o pensamento de uma médica chamada Kübler-Ross, que estudou pacientes em estado terminal:
    O luto pela perda de uma pessoa amada é a experiência mais universal e, ao mesmo tempo, mais desorganizadora e assustadora que vive o ser humano. O sentido dado à vida é repensado, as relações são refeitas a partir de uma avaliação de seu significado, a identidade pessoal se transforma. Nada mais é como costumava ser. E ainda assim há vida no luto, há esperança de transformação, de recomeço. Porque há um tempo de chegar e um tempo de partir, a vida é feita de pequenos e grandes lutos, através dos quais, o ser humano se dá conta de sua condição de ser mortal.

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  6. Ozai, sempre leio seu blog, muito bom. E este, particularmente, me faz perguntar sobre sua afirmação de que, ao morrer “cessam os dilemas”.
    Será?
    É aí a questão toda de todas as indagações que fazemos do “oque somos, de onde viemos, para onde vamos”…
    Encaro a morte como o GRANDE DESAFIO: ou cessam ou não cessam os dilemas. Ou é tudo ou é nada.

    Um abraço.

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  7. Caro Ozai, voce sabe o quanto aprecio receber suas reflexoes domingo de manha, e desta vez meu comentario vai ser para discordar.
    Acho que ninguem pode saber as razoes profundas que levam uma pessoa a acabar com a propria vida, mas duvido que a maior parte delas “se imaginam mártires a serem recompensados no além”.
    Mais adiante continuo achando sua postura racionalista e discordando dela: sera que o homem é o unico animal que tem consciencia da finitude? Em algum lugar li sobre o desespero dos animais levados ao abate nos matadouros. Naturalistas falam dos barulhos inhabituais que fazem os bichos da floresta à aproximaçao de uma tempestade, de um tremor de terra, de ameaças varias.
    Sim, claro que nos sentimos seguros com o reproduzir do dia a dia – mas a monotonia da repetiçao também nos faz desejar que algo aconteça, que algo mude, ou seja o velho desejo de “ver o circo pegar fogo” – sugestiva imagem de um desejo tao forte quanto o de que a vida continue a nos conduzir tranquilamente. Pulsao de morte? Nao sei – talvez desejo de viver intensamente – tudo esta tao misturado dentro de nos, nao é?
    Mas refletir sobre a morte, concordo com você – e com Mongaigne! – é sem duvida o começo da sabedoria. Traduzindo em imagens prosaicas, um pouco como as maes dizem aos filhos que nao querem comer, para pensar que ha gente que morre de fome. Pensar na falta faz apreciar a presença. Mas uma presença eterna… seria suportavel?
    Um abraço e bom domingo,
    Regina

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  8. A ausência de alguém querido nos deixa sempre um vazio, fica um som mudo no ar, algo que não dizemos, ou apenas um olá cotidiano.

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