Noam Chomsky: o significado pedagógico da dissidência

*Nas livrarias e sebos salta aos olhos a quantidade de biografias à disposição do leitor-consumidor. Há histórias de vidas para todos os gostos: política, ídolos da juventude, livros que alimentam a curiosidade sobre a vida alheia etc. Afinal, por que se escrevem tantas biografias? Do ponto de vista mercadológico a resposta deve estar na possibilidade de atender a expectativa de consumo e, é claro, concretizar o lucro. Mas de onde vem esta expectativa? Por que os indivíduos, mesmo os não dados a leituras cotidianas, são tão fascinados por este gênero literário?

A verdade é que estas vidas, sintetizadas em palavras, transformadas em livros, valor de uso e valor de troca, são vidas modelares. São vivências que extrapolam o viver comum da maioria dos indivíduos; vidas virtuosas que se destacam. Portanto, do ponto de vista do leitor, a biografia cumpre uma função modelar. É o exemplo a ser admirado e, se possível, seguido. Mas é também o exemplo a ser recusado e criticado. Em ambos os casos, para o bem ou para o mal, cumpre uma função pedagógica, tem uma potencialidade educativa e configura uma pedagogia do exemplo.[1] O paradoxo é que a biografia é una, singular e intransmissível. Por mais elogios que o biografado mereça, a sua vida não poderá ser assumida por outro, este não pode vivê-la à sua maneira. Talvez a sua força resida neste paradoxo…

Que o leitor me perdoe por estas digressões. Mas, como aprendi com Paulo Freire, a leitura dialógica pressupõe uma atitude ativa e crítica, isto é, uma interação entre o leitor e o autor, através do seu escrito.[2] Vale a pena ler uma obra quando esta acrescenta algo, quando esta é instigante, quando dialogamos com o lido. O leitor passivo toma o lido enquanto a verdade consubstanciada em palavras. Esta atitude nega a riqueza do diálogo e despreza a necessidade da dúvida metodológica.

Os dissidentes são, em essência, indivíduos insatisfeitos, instabilizadores da ordem, críticos das certezas absolutas. Seria, portanto, um desrespeito, e também a demonstração de nada ter aprendido, se a leitura de um livro sobre a vida de um dissidente se resumisse apenas à passiva atitude de maravilhar-se. A biografia de Noam Chomsky permite este diálogo; não é o tipo de obra a ser lida passivamente. A vida de um dissidente é, em si, ativa, polêmica e instigante.

Noam Chomsky: a vida de um dissidente, de Robert F. Barsky, é dividido em duas partes: os três primeiros capítulos tratam do meio que formou Chomsky; os dois últimos, do meio que ele ajudou a criar, isto é, da sua influência sobre as pessoas nos espaços em que conviveu. Na primeira parte, o autor analisa a influência da família, da cultura e política judaicas, dos primeiros passos no mundo acadêmico e o impacto do pensamento cartesiano e racionalista sobre o desenvolvimento intelectual de Noam Chomsky no campo lingüístico. Na segunda, ele enfatiza a carreira universitária e o ativismo militante do biografado. Por fim, o autor contempla a atualidade, o trabalho de Noam Chomsky em relação ao cenário sóciopolítico contemporâneo.

Escrever sobre a vida de um intelectual à altura de Noam Chomsky não é uma tarefa fácil. O autor a define com “assustadora”. Por que? Eis seu argumento:

“Chomsky é uma das mais importantes figuras deste século e é descrito como um daqueles que serão para as futuras gerações o que Galileu, Descartes, Newton, Mozart e Picasso foram para a nossa. Ele é o ser vivo mais citado do mundo – 4 mil citações de sua obra estão relacionadas no Arts and Humanities Citation Index (Índice de Citações de Artes e Humanidades) de 1980 a 1992 – e é o oitavo numa lista, que inclui Marx e Freud, das figuras mais citadas de todos os tempos”. (BARSKY: 2004, p.15)

O autor continua a exibir dados estatísticos sobre citações, publicações e se refere aos inúmeros prêmios recebidos pelo biografado. È mesmo “assustador”. A responsabilidade do biógrafo não é pequena. Ao tratar de um intelectual desta envergadura, qualquer autor corre o risco de fazer a apologia. Este é um dos dilemas das obras biográficas – excetuando, é claro, aquelas de cunho declaradamente crítico. Como escreve Carino (1999: 155):

“Embora as apologias proliferem, seus autores preferem tentar esconder-se (sem êxito) por detrás de uma pretensa neutralidade. Quando a admiração pelos biografados é forte a ponto de tornar-se incontrolável, os biógrafos preferem renunciar a qualquer distanciamento crítico e deixam-se levar pelas ondas arrebatadoras de sua paixão, tornando-se cegos (como qualquer apaixonado) e chegam muitas vezes a naufragar no ridículo. Em verdade, o que fazem são “hagiografias”, cuidando, eles mesmos, de canonizar seus biografados”.

Não é o caso desta biografia. A própria personalidade do biografado não o permite. Chomsky não admitiria o culto à personalidade e ele tem claro que a biografia de um indivíduo está vinculada à vida de inúmeras pessoas que não aparecem e que não são objetos dos biógrafos. Seu biógrafo está atento a este aspecto, mas sua biografia se mostra simpática ao biografado. Por outro lado, é importante ressaltar a sua premissa de que “as idéias de Chomsky, e em particular suas idéias políticas, não podem ser totalmente entendidas sem algum conhecimento acerca das organizações, dos movimentos, grupos e indivíduos com os quais ele teve contato”. (BARSKY: 2004, p. 17)

Dessa forma, a leitura da obra nos permite não apenas conhecer a vida de um dissidente, mas também a história, a cultura e sociedade contemporânea, bem como os movimentos políticos judaicos e no âmbito norte-americano. Permite-nos, ainda, aprender sobre o sistema educacional, o campo acadêmico e a intelectualidade norte-americana. O leitor interessado pela lingüística também encontrará farto material sobre o tema.

A vida de Noam Chomsky atualiza alguns problemas candentes para os intelectuais responsáveis diante do mundo. Sua vida é um desafio ao intelectualismo individualista dos que se isolam em suas torres de marfins e, assim, filosofam sobre o mundo sem arriscarem a assumir compromissos práticos que coloquem em xeque as possibilidades de angariar as benesses prometidas pelo status quo. É um desafio à hipocrisia que reina no campo acadêmico, onde os interesses egoísticos solapam qualquer perspectiva de compromisso social e político, em nome de uma pretensa cientificidade e neutralidade axiológica. Chomsky aceita o dilema de agir segundo a vocação dual do cientista e do político e, simultaneamente, respeitar as particularidades de cada espaço:

“Há um terreno intermediário que eu gostaria de ocupar e acho que as pessoas vão ter de achar meios para isso: isto é, tentar manter um compromisso sério com os valores intelectuais e problemas intelectuais e científicos que realmente as preocupam e, ao mesmo tempo, fazer uma contribuição séria e, espera-se, útil para as enormes questões extracientíficas. O compromisso com o trabalho acerca dos problemas de racismo, opressão, imperialismo e assim por diante, nos Estados Unidos, é uma necessidade absoluta”. (Idem, p. 149)

Isto não é simples nem fácil. Aceitar o compromisso de responsabilidade política e social e manter a atividade do cientista, exige dispêndio de tempo nem sempre disponível, sacrifícios no âmbito familiar e individual e pressupõe um conflito pessoal permanente. Isto é ainda mais complexo quando o indivíduo, como exemplifica Chomsky, torna-se uma voz dissidente no campo acadêmico e extra-acadêmico.

Noam Chomsky é o tipo de intelectual que não faz o sacrifício do intelecto. Descendente de família judaica, polemiza com os judeus sobre o sionismo, o Estado de Israel e a liberdade da crítica; influenciado pelo pensamento libertário, entra em rota de colisão com a esquerda vinculada à tradição marxista; intelectual reconhecido em sua área, confronta a autoridade instituída e desafia a ortodoxia; cidadão norte-americano, não poupa críticas às políticas governamentais, mas também não aceita as justificativas de certa tradição esquerdista para quem o equivocado é sempre o outro e nunca os que estão nas próprias fileiras. Em sua obra, Robert F. Barsky, expõe as atividades de Chomsky enquanto cientista e intelectual engajado, suas influências intelectuais e as polêmicas em que se envolveu.

A vida de Noam Chomsky é modelar. E os modelos podem ser “negativos” ou “positivos”, a depender da interpretação do leitor. Porém, não esqueçamos que o leitor não se encontra suspenso no ar, isto é, sua atitude e posicionamento político diante da ordem instituída – dentro e fora da academia – é um fator de profunda influência sobre a sua postura. Em qualquer dos casos, é preciso ter a ousadia intelectual para confrontar nossas certezas e, então, podermos aprender. Só por isso, já vale a pena ler esta obra.

Referências

BARSKY, Robert F. Noam Chomsky: a vida de um dissidente. São Paulo: Conrad Editora, 2004 (271 p.)

CARINO, Jonaedson. “A biografia e sua instrumentalidade educativa”. Educação e Sociedade, Ano XX, agosto de 1999, nº 67, Campinas/SP: Cedes, pp. 154-178.

FREIRE, Paulo. Considerações em torno do ato de estudar. Revista Espaço Acadêmico, nº 33, fevereiro de 2004.


* Resenha publicada originalmente na REA, nº 46, março de 2005.

[1] “Ora, estudar a vida de alguém, e fazer dessa vida um repositório de exemplos educativos, é selecionar as reações desse alguém diante da vida, e tomar tais reações como modelos para aqueles que se busca educar”, afirma Jonaedson CARINO. (Ver: “A biografia e sua instrumentalidade educativa”. Educação e Sociedade, Ano XX, agosto de 1999, nº 67, Campinas/SP: Cedes, pp. 154-178).

[2] “Isto significa que é impossível um estudo sério se o que estuda se põe em face do texto como se estivesse magnetizado pela palavra do autor, à qual emprestasse uma força mágica. Se se comporta passivamente, “domesticamente”, procurando apenas memorizar as afirmações do autor. Se se deixa “invadir” pelo que afirma o autor. Se se transforma numa “vasilha” que deve ser enchida pelos conteúdos que ele retira do texto para pôr dentro de si mesmo”. Ver. Paulo Freire. Considerações em torno do ato de estudar.

5 comentários sobre “Noam Chomsky: o significado pedagógico da dissidência

  1. Caro Ozaí, caros leitores deste blog

    Penso que há uma questão epistemológica que ultrapassa o paradoxo: a biografia é individual e intransmissível a outros. Certo. Mas isso não é também a condição dos conceitos que são produzidos a partir da inserção histórica do sujeito numa relação histórica e espacialmente (ou territorialmente) datadas? Os conceitos – tirando a presunção de que eu possa transferir explicações geradas nomeu mundo para o mundo dos outros, que sequer conheço – têm função semelhante às biografias: são categorias historicamente produzidas, são indicativos de ação para sujeitos, são referências de observação e prática social, indiividual ou coletivamente tomadas.

    Penso, por isso, que biografias de pessoas que abriram fronteiras pela sua inconformidade têm um potencial heurístico e de referencial privilegiados.

    Ninguém, entretanto, pode cancelar o protagonismo de cada um e de todos os sujeitos que lêem as biografias. Concordam com essa assertiva?

    abraço

    josé fernando kieling

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  2. Os passos de Chomsky são antes de tudo uma porta aberta aos horizontes de possibilidades que nos fazem presentes, que nos abrem hoje. Se ele é comparado com consagrados autores do passado é justamente por essa perspectiva de nos mobilizar a um compromisso com a realidade que nos abarca, que nos rodeia. Um convite a não passarmos como marionetes pelas conotações que nos imperam. Colocado como ponto modelar vem a indagar, a instigar: a onde queremos chegar? A onde queremos chegar precisamente com as nossas próprias vidas? É um ousar a Ser a Si mesmo.

    Paz e Luz

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  3. Há um ditado budista que diz: se o pássaro disser uma coisa e o livro outra, fique com o pássaro.
    Todos os pensadores consistentes confrontam o que esta estabelecido ou o que tentaram estabelecer sobre a realidade (o livro) com a própria realidade (o pássaro) que, na essência, é inapreensível.
    Você foi admirável quando tocou nesta questão :
    “Isto não é simples nem fácil. Aceitar o compromisso de responsabilidade política e social e manter a atividade do cientista, exige dispêndio de tempo nem sempre disponível, sacrifícios no âmbito familiar e individual e pressupõe um conflito pessoal permanente.”
    Obrigada por não se proteger na “torre de marfim”,
    Obrigada por me introduzir a Noan Chomsky. Vou procurar conhecê-lo.

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  4. Achei muito interessante a sua abordagem,estou escrevendo minhas memorias e sentia-me agraciado quando compra-me um livro,só até agora um leitor fez uma
    crítica não sei se o alcance da minha dissidencia merece tal esforço daqueles
    que leram.Por outro lado eu tinha um conceito de que biografia no meu caso
    autobiografia de memória não era mais do que uma afagação do Ego,por isso
    nem de longe penso passar ,ou melhor dizendo alcançar o horizonte do seu texto
    que acabei de ler.

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  5. Acho excelente esta formulaçao – “O leitor passivo toma o lido enquanto a verdade consubstanciada em palavras. Esta atitude nega a riqueza do diálogo e despreza a necessidade da dúvida metodológica.” – e acrescentaria que esta é a atitude ideal de leitor diante de qualquer obra. Fica mais evidente quando se trata de literatura, pois as palavras se prestam imediatamente ao dialogo. Mas mesmo diante de uma pintura, de uma musica, se ao par do encantamento e do prazer de contemplaçao, deixarmos vir a tona perguntas e duvidas sobre os inumeros “porques” de qualquer criaçao, nossa relaçao com essa “cosa mentale” sera muito mais interessada e interessante.
    Faltou so uma indicaçao de uma obra de Chomsky que você acharia mais acessivel ou mais interessante ou mais indicada para tal ou tal leitor… afinal é dele que se trata. E nada vale tanto quando um contato direto com o texto de que se quer tratar.

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