Sobre o tempo e a velhice

“Matamos o tempo; o tempo nos enterra”.
Machado de Assis

Estes dias assisti ao filme Sombras de Goya[1] e lembrei-me de um texto que li, por coincidência, há cerca de um ano. Trata-se de “O sono da razão produz monstros”, escrito por Jorge Coli.[2] Neste, o autor refere-se a temas que me fazem pensar muito: o tempo e a velhice. Talvez porque o meu vizinho tenha completado 80 anos – e em plena forma; ou porque medito sobre o meu avô com os seus 107 – embora numa situação praticamente vegetativa; talvez porque nesse período fico assim… pensativo!; quem sabe seja a proximidade do meu cinqüentenário.

Seja como for, na obra do pintor Francisco de Goya y Lucientes (1746-1828) há um quadro que representa mulheres idosas diante do espelho. É uma das faces da velhice que, muitas vezes, não gostamos de ver, mas que mostra como o tempo deixa suas marcas. Como nota Coli, “toda beleza fenece, o vigor da juventude é transitório, loucos aqueles, como a velha no espelho, que desconhecem o caráter transitório de si mesmo”.[3]


Às vezes, a vaidade nos cega diante dessa realidade irrefutável: o tempo passa, ou, como dizia o poeta, “O tempo não pára”. Dialeticamente, como diriam meus amigos marxistas, a vida traz em si a própria destruição; começamos a morrer assim que nascemos e quanto mais nos apegamos à vida, mas ela foge de nós. Eis uma contradição insuperável. Daí o apego humano aos delírios da imortalidade e a crença em promessas como a ressurreição, vida após a morte, etc.

Talvez o tempo seja como Saturno, o deus da mitologia romana representado por Goya, sobre o qual observou Coli: “A imagem do tempo capaz de revelar a verdade torna-se para ele [Goya] a entidade obsessiva e impiedosa que reduz o homem ao efêmero de si mesmo. Passa-se da experiência física a uma consciência propriamente ontológica do estar no mundo: numa das decorações para a sua Quinta, o velho tempo transforma-se num Saturno, num deus Cronos monstruoso, que devora seus próprios filhos. O tempo é aquele que engendra, o pai absoluto que traz à existência para depois destruir sua prole”. [4]


Outro dia vi um cachorro morto na rua e, instintivamente, virei o rosto. Não queria olhá-lo. A cena me perturbava. A imagem não saía da mente. Por que? Se pensarmos bem, do ponto de vista da matéria, isto é, da certeza de que fenecemos como qualquer outro corpo vivo, o que nos diferencia de um cão ou outro animal? O fato de termos consciência? A nossa alma? A crença em algo transcendental e noutra esfera para onde irá a nossa alma? É preciso, porém, acreditar!

Permanece o dilema humano e a dificuldade em aceitar que não é eterno, que a vida é finita. O ser humano é o único animal que tem consciência da morte e, portanto, é admirável a sua arrogância perante o inexorável. Alguns até se recusam a falar e pensar sobre isso; outros agem como se a juventude não sucumbisse ao tempo. Esquecem, no entanto, que morremos a cada segundo que vivemos.

A depender das circunstâncias, talvez seja melhor não chegar à velhice, não se ver no espelho nem vegetar. Vale a pena continuar vivendo quando perdemos o domínio mais elementar sobre o nosso corpo? Não podemos fugir à morte, mas é possível transformar o tempo em nosso amigo? Não advogo o suicídio nem recrimino a velhice. Esta tem algo de belo e positivo. Há outros quadros que podem ser pintados além das representações do grande pintor espanhol. Em qualquer caso, o tempo deixa marcas indeléveis em nosso rosto, em nosso corpo. Ele não nos perdoará e cumpriremos o ciclo da vida. Melhor nos resignarmos a esta verdade absoluta.

Gostaria de chegar aos 80 anos e curtir a idade com a energia e o orgulho do seu Joaquim; mas não desejo chegar aos 107 se isto significar viver como o seu João, meu avô.

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[1] Sombras de Goya, Espanha, 2006. Direção: Milos Forman.
[2] In: NOVAES, Adauto (Org.) A Crise da Razão. São Paulo: Companhia das Letras; Brasília, DF: Ministério da Cultura; Rio de Janeiro: Fundação Nacional de Arte, 1996, p. 301-312.
[3] Id, p. 307.
[4] Idem.

11 comentários sobre “Sobre o tempo e a velhice

  1. “A vida deve ser vivida, ainda que em seus momentos de angústia e de dor e ver o ser humano em seu exercício de viver é a dádiva maior que Deus nos concedeu” ( Érico Veríssimo )

    Talvez por isso a imagem do cachorro morto nos incomoda tanto.

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  2. Excelente texto, Ozaí. Penso também que o tempo pode ser um amigo. Muitos aprendem com ele, sofrem, tem alegrias, prazeres, paixões, amores. Se morremos a cada segundo é porque vivemos a cada segundo. Se a velhice chegar, seja bem vinda. Se a morte vier, venha, mas saiba que a vida valeu antes de conhecê-la. E se tudo isso é um sonho, sonhemos a plenos pulmões!….

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  3. Blog muito interessante!Chamou-me a atenção esse post, pois já há alguns meses eu venho passando por essas reflexões: velhice, morte, Goya, vida. Até o fato citado (do cachorro morto)foi semelhante ao acontecido comigo, cheguei a ver duas vezes seguidas numa rua por onde andava, dois gatos mortos. Isso me deixa intrigada… Somos fantoches de uma força maior ou estamos largados ao acaso?

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  4. Incrivel, muito bom, não só este post como o blog em geral.Faz pensar e gosto disso, além disso é bom poder conhecer escritores experientes.Parabéns.E se puder dpois de uma olhada nos meus blogs. Um é pessoal, o outro eu escrevo com um amigo meu sobre temas diversos.Obrigado.

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  5. post bem reflexivo e filosófico, ótimo para se ler em um domingo chuvoso e tedioso de férias, abraços professor

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  6. Pensar no tempo não é fácil, principalmente quando não vislumbramos nada além da morte.Prefiro me manter alienado aos olhos humanos, vivendo bem e acreditando que depois da fronteira haverá um horizonte de esperança. Prefiro crer que existe algo maior que tudo isso aqui, e que as palavras de vida eterna de CRisto não foram em vão. Prefiro crer que não nasci de um nada, e que o amanhã será absolutamente revelador. Eu creio.

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  7. Olá companheiro…Fizemos uma pequena mudança no endereço eletrônico do Blog, como primeiro passo para mudanças maiores que estão por vir. Agora nosso endereço é: http://www.cassionl.blogspot.com acesse, comente, divulgue e contribua!!!Atualize, por favor!!!

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  8. Meu Caro Ozaí, me perdoe o amigo, mas são 22:00 h e estou de plantão num minúsculo hospital de um minúsculo município e, entre um chamado e outro, venho para esta sala que me conecta ao mundo – virtual, é verdade. Nela, um relógio de parede trabalha, incansável. Parece rir de mim. Ou chorar por mim, não sei bem. O fato é que o desgraçado do relógio não me deixa esquecer a inexorabilidade do tempo. Ah … o tempo! Então me desespero e é para ele que escrevo: “O tempo, meu amigo, me assustaPorque ele, vem de braços dadosCom a vida que passa tão sôfregaAnunciando, sem cerimônia,Que tudo que inicia termina. O tempo, meu amigo, me apavoraPorque ele, em passos bem largosAvisa que como a vida, sua irmã,Não gosta de olhar para trásNão pára, jamais desanima. O tempo, meu amigo, me espreitaPorque ele, onipresente que éPercebe que tento esquece-loMas sei que isso é impossívelNão dá pra parar numa esquina. O tempo, meu amigo, me condenaPorque ele, ditando suas regrasTornando finito os meus sonhosMe mata cada dia um poucoMe despreza e então me elimina. O tempo, meu amigo, me enlouquecePorque ele, ironicamente me mostraQue tem por companhia o destinoE, juntos, me pregam uma peçaComo se eu carregasse uma sina.” Ah…. o tempo…. esse desgraçado! Plinio Silveira

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  9. Bom-dia, Ozai, bela reflexao e muitas questoes levantadas.Sera que so o homem tem consciência da morte? Parece que nao, animais em perigo também se mostram angustiados e procuram fugir por todos os meios. O que me parece mais importante na sua reflexao é a necessidade da consciência da transitoriedade, da precariedade da nossa situaçao temporal e finita.Mas sera que se pode dizer que a vida é finita? Acho que nos, sim, somos finitos, mas a vida sera que acaba? Eu diria que ela nos abandona e isso começa antes da morte. Quando começa, nao sei, mas a velhice acho que é a consciência cada vez mais clara e evidente desse abandono.E a morte, o que é? passagem ou fim absoluto? Ninguém sabe, ninguém viu…Mas concordo com algo que aparece no que você diz, que para viver a vida é preciso aceitar que ela passa e acaba. Bom, mas quando a gente começa a parafrasear o texto comentado, é hora de pôr um ponto final no comentario.Um abraço e bom domingo.Regina

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  10. Por estas mesmas impressões sobre a vida que o sábio Salomão disse: “vaidade por vaidade, tudo é vaidade”.

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