Prostituição titulada

Diz o senso comum que a prostituição é a profissão mais antiga na história do mundo. Há várias maneiras de se prostituir, como são vários os tipos de prostitutas. O comércio sexual nem sempre ocorre num contexto de miserabilidade humana; há, também, a prostituição de luxo, restrita aos que podem pagar altas quantias. Na medida em que prostituir-se equivale a um trabalho, uma profissão, deve ser reconhecida. Devem, portanto, ter o direito de se organizar e defender seus interesses.

Embora o néscio restrinja a prostituição apenas a este aspecto, prostituir-se não se limita ao mercado sexual.* Imaginemos a seguinte situação: o governador quer ficar bem com a sua base eleitoral e decide criar um campus em sua região. Para tanto, oferece a quem comprar o seu projeto vantagens traduzidas em investimentos, possibilidade de contratações, etc., pois o novo campus deve estar vinculado a uma universidade que se responsabilize pela implantação do curso. Tudo a toque de caixa! Os cursos oferecidos devem começar a funcionar já no segundo semestre! Mas com muito dinheiro na jogada. Quem topa?!

Começam os argumentos auto-justificáveis. Reconhece-se os problemas da proposta: a politicagem, os métodos nada republicanos, as articulações de grupos que têm interesses políticos e econômicos, etc. Mas, como ser contra a expansão do ensino superior público? Afinal, a população da região agraciada também ganhará. Não queremos que os filhos do povo tenham acesso à educação?

Assim, inverte-se a lógica da discussão e torna-se quase inadmissível qualquer postura contrária. No final, parece não haver outra opção a não ser aceitar a proposta. Cinicamente, argumenta-se que se não aceitarmos outros o farão (ainda que já tenha sido recusado por outra instituição). Então, nos submetemos aos caprichos e interesses do político. Em nome do povo!

Também sou a favor da expansão da universidade pública. Sonho com o dia em que haverá vagas para todos e torne-se desnecessária a tortura do vestibular. Mas será que os fins justificam os meios?! Será preciso concordar com propostas deste tipo para que o povo tenha acesso à universidade? Não seria mais lógico recusar o método político adotado? São atitudes excludentes?!

Mas como recusar os benefícios oferecidos para quem compra o projeto? Como abrir mão de recursos financeiros, materiais e políticos? A hipocrisia não é capaz de esconder os próprios interesses, mas é preciso mascará-los como se fossem coletivos – da instituição, do povo que será beneficiado pela criação do campus, etc. Esquece-se, voluntariamente, todos os aspectos que ferem o republicanismo, e ainda posa-se de republicano.

O crítico é isolado em sua ingenuidade idealista – por sua incapacidade de reconhecer a realpolitik. E, como ele teve a audácia de afirmar que a aceitação seria uma forma de prostituir-se, ainda leva a pecha de preconceituoso. Mas como se referir a uma atitude em que alguém abre mão de princípios básicos e vende a própria consciência? Ora, não fossem as vantagens oferecidas enquanto contrapartida, tal projeto nem chegaria a ser discutido. A voz do poder, especialmente quando acompanhada de prendas, é acatada sem maiores pudores.

A abdicação de princípios em troca de vantagens pecuniárias também é uma forma de comércio – isto partindo-se do pressuposto de que há princípios a serem defendidos. A consciência, valores nos quais acreditamos, torna-se valor de troca. A prostituta tem o mérito de não mascarar seus interesses particulares em interesses universais e públicos. Ela merece mais respeito do que os diplomados e titulados que se vendem ao poder! Onde está o preconceito?!


* Recorro ao Dicionário Aurélio para mostrar que a palavra tem mais de um significado:

Prostituir

[Do lat. prostituere, ‘expor’, ‘pôr à venda’.]
Verbo transitivo direto.
1. Iniciar na vida de prostituto; entregar à devassidão; desmoralizar, corromper.
2. Fig. Tornar vil ou degradante; degradar, aviltar, desonrar:
prostituir a justiça.
Verbo transitivo direto e indireto.
3. Entregar, para que se prostitua:
O miserável prostituiu a filha adotiva a um milionário.
4. Expor publicamente:
As dançarinas prostituem o corpo aos olhos dos fregueses do cabaré.
Verbo pronominal.
5. Entregar-se à vida de pública devassidão; tornar-se prostituto.
6. Produzir (o artista ou o cientista de capacidade) obra artística ou científica com o objetivo exclusivo de enriquecer, desprezando princípios, ideias, ou a qualidade do trabalho:
Muitos pintores de talento se prostituem, tornando-se verdadeiros comerciantes.
7. Fig. Desonrar-se, aviltar-se, praticando ações vergonhosas ou indecorosas; rebaixar-se:
A justiça não pode prostituir-se.
8. Deixar-se corromper por suborno de favores. [Conjug.: v. atribuir.]

15 comentários sobre “Prostituição titulada

  1. Ozaí, grande texto. Tem gente que confunde vender consultoria com vender consciência. Erro crasso.

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  2. Ozai: fico entristecida de ver este texto, francamente. Para mim, a coisa funciona da seguinte maneira: cada pessoa que consegue um titulo (de doutor, de mestre, de especialista, ou mesmo de bacharel), se beneficiou dos recursos do estado adquiridos com os impostos pagos por TODOS. Entao, quando novas escolas e universidades abrem, e’ justo e NECESSARIO que estas pessoas trabalhem nestas novas instituicoes PARA COMPARTILHAR O QUE SABEM. Logicamente, a nao ser num regime de escravidao, ninguem trabalha de graca. Nao e’ pecado nem erro politico querer adquirir bens de consumo para si e para sua familia, melhores condicoes de vida, melhor atendimento medico. E, ao mesmo tempo, estes profissionais bem preparados estao ajudando a geracao seguinte a ser mais bem preparada, mais bem atendida. “Não queremos que os filhos do povo tenham acesso à educação?” voce mesmo pergunta, retoricamente. E como vamos conseguir que estas pessoas tenham acesso ‘a educacao se nao houver que os ensine? Ou nos levantamos todos, ou nao nos levantamos. Quanto mais gente educada houver, menos mumunhas politicas havera’.

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  3. Meu caro Raymundo…

    Sinto muito… Mas não posso discordar de uma só linha daquilo que nosso amigo Ozaí escreveu.
    Acredito que há muito mais moralismo na postura dos que, cínicamente, apresentam estes e muitos outros projetos semelhantes como possuindo um caráter “coletivo”, como exemplos de “inclusão”, “sustentabilidade”, “participação” e tantos nomes novos para práticas tão óbvias e antigas. Essas coisas me cansam; talvez por isso eu as ache ultimamente tão engraçadas.

    O Ozaí escreve belos textos, eu acho graça e me dedico àquilo que acredito valer a pena me dedicar na universidade. Poderíamos colocar fogo no próprio corpo ou invadir a reitoria. As opções são muitas, mas poucas delas nos levariam ao ponto onde nasce o problema. A verdade é que conheço poucas instituições onde prevaleça de forma tão imperiosa uma “racionalidade mercantil” como na universidade.
    Antes que me entenda mal, ou imagine que o que escrevo possa incluí-lo de alguma forma: não, claro que não. Você é uma das figuras mais admiráveis que conheço na universidade; desde meu tempo de graduação. Representa o oposto de tudo isso que escrevi acima.

    Por fim, e ainda assim, acredito que as idéias de São Francisco de Assis (sim, ele também as possuía!) poderiam contribuir bem mais para o nosso atual momento que muitos outros autores. Afinal, é em nome de muitos desses outros, críticos do capitalismo, que tais pespectivas e atitudes, tão cínicamente capitalistas, são, enfim, adotadas.
    O moralismo, repetindo, acredito vir por parte daqueles que pretendem fazer desses episódios, episódios de grandeza e despreendimento. Melhor fazem os colegas de outro departamento, que, por mim indagados a respeito do porquê aceitaram fazer o trabalho, responderam claramente e em tom de brincadeira que aquele era, afinal, “um trabalho como outro qualquer”. A honestidade é, no final das contas, uma grande virtude. E, como o próprio Ozaí notou, pode se esconder onde menos se espera.

    PS: Há quanto tempo eu não lia a palavra “néscio”! A última foi lendo “O elogio à Loucura”, do Erasmo de Roterdã. Sintomático.

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  4. Caros Professor,
    não gostaria de entrar tanto no mérito da discussao quanto a ser ou não “preconceituoso”, ainda que eu acredite que a sua argumentação com a utilização do dicionário, como debateu “Darci” tem um quê de se eximir à responsabilidade; de “entrar” na facilidade do “não sou eu quem disse, está no Dicionário!”
    Postura muitas vezes (e na maioria delas) tomadas tbm pelos Cientistas (sobretudo em nosso “mundo”).
    E daí tbm uma contradição entre o incio do seu texto e os recursos utilizados – “o senso comum” e “a autoridade do Aurélio”? Como se o senso comum estivesse isento de conhecimento, ainda que não pautado nos canones cientificos?
    Outra questão que me intriga, professor, é a critica desde onde ela é feita.
    Mais uma vez, estimulada por um debate que já tivemos em textos anteriores.
    A critica deve ser feita, sim! E acredito que o debate é SEMPRE um instrumento de aprimoramento. No entanto, esta mesma critica não deve ser descolada das ações objetivas; “do abrir mão dos principis basicos” como foi dito.
    Velho problema das proprias esquerdas, tão criticado tbm.
    Como bem disse o Raymuldo, este texto pareceu ressentido e diria até mesmo “pessimista”, “descrente”, ou até justificativo de algum ato mal compreendido inclusive por quem o fez.
    Lembra-se do que escrevi em outro momento: “de que corremos o risco de nos tornarmos um engodo de nós mesmos”? Não é só uma formulação que parece elaborada, ela é mais simples do que se imagina e não prestamos atenção nisso em nosso dia-a-dia.
    Não estamos imunes a erros, nem a contradições, mas quando nos colocamos numa posição “diferente”, devemos ser mais vigilantes, e não só dos outros. Por que isso é mais facil!

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  5. Bem, eu estou longe, mas perto também, o mundo não tem, ou dizem que não tem hoje fronteiras. Não apenas geopolíticas, mas sociais e culturais. O discurso académico deixou de estar demarcado por fronteiras tão estáticas e imunes à dialética. Prostituir, usado metaforicamente, aqui, é considerado um recurso metafórico vernáculo. Até falamos num Deus prostituído e todos percebem o que queremos dizer… sem sujeição aos censores académicos.
    Mas o Amigo Raymundo Lyma poderia distinguir com mais precisão essa distinção entre moral e ética, com aspas. Eu não compreendi muito bem… Pareceu-me uma ”banalidade” filosófica, mais banal do que a vernácula metáfora.

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  6. ” E, como ele teve a audácia de afirmar que a aceitação seria uma forma de prostituir-se, ainda leva a pecha de preconceituoso.” De fato,”ele” reconhece que usou o verbo “prostituir-se” para qualificar um ato que julga imoral, sujo, ilegítimo. Entretanto,”ele” recorre ao dicionário Aurélio para justificar que tal uso não foi preconceituoso. Oras, o Aurélio autoriza o uso do verbo e limpa a consciencia daqueles que usam a qualificação “prostituição” para nomear atos imorais. Tudo bem, fica-se em paz com a “posição” crítica. O Aurélio mostra que a qualificação pode ser usada com vários significados, mas todos eles correspondentes a atos corruptos, imorais, ilegítmos. É isso mesmo que li??? Nossa, o Aurélio tem muita autoridade para “ele”. Que tal perguntar as prostitutas sobre isso? O Aurélio é neutro? O Aurélio define, no rol dos significados que fornece ao termo, o que as prostitutas fazem? “Ele” poderia usar outros termos para qualificar o ato que julga imoral e corrupto, mas usou o “prostituir-se”. E reproduziu sim um preconceito. Talvez o melhor seria “ele” refletir um pouco sobre seus limites, e não se considerar imune ao uso de palavras carregadas de preconceitos, recorrendo ao Aurélio. Francamente, recorrer ao Aurélio não combina com “ele”, com a visão crítica que “ele” pretende transmitir.

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  7. Muito bom o teu texto, excelente visão. Os ‘prostitutos do poder’ estendem seus tentáculos por toda a parte: universidades, fábricas, escolas, enfim, a todas as instituições que os legitimem, para que possam agir “naturalmente” a favor de seus interesses, diga-se de passagem, podres interesses. Abraços. Tânia

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  8. Meu caro Ozai, nessa voce exagerou feio. (É a primeira vez que desaprovo um texto seu). Porque é cômodo ficar olhando a banda passar com acadêmicos titulados, arrogantes, cínicos, políticos vestidos de “realismo academico”, ok, temos que criticá-los. O dificil é sair dessa cômoda posiçaõ e “lutar” de dentro dos aparelhos, para melhor mexer com os interesses, demarcar uma ética universitária. O discurso solitário,de blog, serve apenas para catarse. E apenas com catarse escrita, elitizada, não se transforma as coisas da universidade pública. Pareceu-me que esse texto tem um tom ressentido e moralista. Uma coisa é o discurso “moral” e outra é o discurso que aponta para uma “ética”. O discurso moralista é tanto impositivo quanto ressentido, quando não logra sucesso. Meu caro amigo, cuidado para não cair num fundamentalismo moralista, monológico, que está mais para São Francisco do que para a proposta kantiana.

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  9. Antonio
    Bom dia.
    Temos necessidade do grandioso. Estaremos construíndo a rodovia X e com ela a solução de vários problemas. Proclamam os que conduzem a Republica. Mesmo construída a tal rodovia, logo nos deparamos com o excesso de trafego, com a falta dos equipamentos de segurança na mesma rodovia(sinaleiras, viadutos, passarelas, pintura das faixas) e na sequência falta da devida manutenção, passamos à conviver com os buracos no asfalto. Descobrimos que não tem ambulância, nem guincho, nem telefone. Logo as placas ficam velhas e enferrujadas. A nosso ver não basta ter planejamento é preciso seguir o planejado. Particularmente acho que a prioridade dos governantes de plantão deveria ser o ensino básico. Ainda temos muitas crianças sem escola fundamental. Temos milhões de crianças sem creches, 0 a 6 anos. A Escola fundamental tb é carente de condições materiais e os professores e funcionários ainda mal remunerados. Os Municípios com valores percebidos acima de dois minimos são poucos no Brasil para os mestres do fundamental.
    Um abraço
    Pedro

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  10. Ótimo texto para uma boa reflexão. A propósito, o senhor tem Formspring? (aquele site onde pode-se fazer perguntas diretamente à pessoa)

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  11. De acordo. Em Portugal, vai acontecendo o mesmo. As universidades são um belo negócio e a espécie dos professores não se pode extinguir, tem que proliferar e procriar. Por isso encontramos em cada caixa de supermercado um Doutor.
    O pior é quando os supermercados começarem a fechar…

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  12. Honestamente achei a comparação muito grosseira, e penso mesmo que todo o arsenal é de um modismo de classes ociosas, e que não tiveram as dificuldades que os menos aquinhoados tem.
    Se ficarmos em disputas de narciso em cada iniciativa de algum líder, vamos a um caos, que parece uma paixão anarquista daqueles “sem idéia”, “sem qualidade”, ou “sem liderança”.
    SHALOM

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  13. Texto explendido!

    há várias formas de prostituição; interessante romper com essa logica oficialesca de “prostituta” ou ‘protistuto”

    E lembremos que todos trabalhadores vendem diariamente a força de trabalho.

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