Produtivismo acadêmico – Os Improdutivos!

“Nas reuniões dos colegiados ou assembleias dos programas de pós-graduação as questões que predominam são as de como fazer, pouco se discutindo as relações daquela pressão pelo produtivismo acadêmico e a nova conformação e função social da Capes. Não há reflexão para além do imediato: fazem-se as discussões no plano da superficialidade extensiva. Desta forma, o professor-pesquisador, inconscientemente na maioria das vezes, internaliza como natural toda a intensificação e precarização de seu trabalho e as conseqüências para a sua vida” (Valdemar Sguissardi e João dos Reis Silva Júnior)[1]

“Sou coordenadora de extensão da unidade, orientadora de TCC, dou aula mesmo, oriento projetos em comunidades de minha cidade, participo ativamente de todas as atividades de minha unidade, mas meus pares me taxaram como: improdutiva!”[2]

lattes_preenchimentoUm dos efeitos do produtivismo acadêmico, a espada de Dâmocles que paira sobre os programas de pós-graduação, docentes e pós-graduandos, é a desqualificação e pressão pela exclusão dos que não conseguem atender às exigências produtivistas. O receio de que o programa de pós-graduação tenha o conceito rebaixado, ou até mesmo seja descredenciado, induz à distinção entre produtivos e improdutivos. O fator distintivo que separa uns e outros repousa sobre a maior ou menor produção acadêmica, sendo esta entendida essencialmente enquanto publicação de artigos em periódicos acadêmicos ditos científicos. E não basta ter publicado, é exigido que seja em periódico classificado com alto Qualis.

Tal critério produtivista desqualifica outras atividades docentes que fazem parte da rotina acadêmica no campus. As funções burocráticas que muitos são chamados a desempenhar – e que alguns desempenham com um apego admirável e desmedido – nada valem perante a “produção acadêmica”. Assim, ocupar a coordenação de programa, curso, etc., ou algum outro cargo pedagógico-burocrático pode até mesmo ser prejudicial à carreira acadêmica – em especial se o docente estiver vinculado à pós-graduação. A docência, a orientação, a extensão e outras atividades pedagógicas importantes passam a não ser tão importantes – especialmente na graduação. No limite, como escrevi em há anos[3], chega o momento em que até mesmo dar aulas torna-se um empecilho, um mal necessário, pois toma o tempo precioso que poderia ser dedicado às atividades que permitem acumular mais pontos. Disto pode depender o mestrado, o doutorado e o quinhão de poder.

Instaura-se o reino da competição e não há espaço para os “improdutivos”. Consequentemente, devem ser excluídos. Os que não suportam a pressão se auto-excluem. Muitas vezes, após anos de dedicação aos programas de pós-graduação, contribuindo para a formação de mestre e doutores, não suportam o estresse e, abalados em sua saúde física e mental, afastam-se da pós-graduação. Outros, ainda que sob críticas e cientes dos prejuízos reais e simbólicos, decidem não ingressar em tais programas.

Isto me faz lembrar de Maurício Tragtenberg. Ele foi professor da pós-graduação e graduação em instituições de reconhecimento nacional e internacional, como a PUC/SP e a Unicamp. No entanto, era uma época na qual a ideologia produtivista não permeava os campi com a intensidade atual. Um parecer sobre a “produção acadêmica” do Professor Maurício Tragtenberg, de 1991, é ilustrativo da realidade que predomina nas universidades brasileiras:

“Os que conhecem a atividade docente do Prof. Maurício Tragtenberg, dentro e fora da sala de aula, sua atividade como escritor e conferencista, ficam decepcionados com o relatório – não porque o Prof. Tragtenberg tenha feito pouco, mas porque o muito que fez parece pouco em um formulário padronizado de mais de vinte folhas, em que a maior parte dos itens fica em branco. O problema não é com o Prof. Tragtenberg: é com o relatório que o obrigam a preencher. Fico imaginando o tempo que ele deve ter gasto decidindo se um artigo seu foi publicado em “periódico especializado” ou em “periódico não-especializado”, ou então se deve ser classificado como “publicação de caráter variado”. Que desperdício de tempo! Imagino que, dentre os que vão ler o relatório, muitos considerem um artigo publicado em periódico especializado (em quê?) provavelmente mais importante do que outro publicado em periódico não especializado, e certamente mais importante do que algo classificado apenas como publicação de caráter variado. Mas será essa gradação (supondo que realmente exista) justificável? Receio que não. Conheço muitos artigos de divulgação que são muito mais profundos e valiosos do que muita irrelevância que se publica apenas por ser (ou se supor) especializada. Karl Popper uma vez disse que a especialização pode ser uma grande tentação para o cientista natural, mas para o pensador crítico (que ele chama de “filosófico”) é um pecado mortal. Desse pecado mortal ninguém pode condenar o Prof. Tragtenberg.” “Parecer sobre o relatório de Atividades do Prof. Maurício Tragtenberg”.[4]

Observe-se que o produtivismo já se insinuava, mas os avaliadores tiveram o bom-senso de entender que a produção acadêmica de um docente não pode se restringir a critérios burocráticos e produtivistas. Maurício escreveu artigos em jornais e manteve a coluna No Batente, no Notícias Populares.[5] Pelos critérios acadêmicos atuais, sua intervenção enquanto intelectual vinculado ao mundo do trabalho e às questões candentes do seu tempo não teria qualquer importância. Nem o Qualis seria capaz de medi-la. Em suma, se Maurício vivesse nestes tempos produtivismo acadêmico enviezado, muito provavelmente seria desqualificado como improdutivo.

A pressão para publicar é insana. Confunde-se quantidade com qualidade![6] E o critério produtivista que prende o docente subserviente, mas interessado, nas cadeias das agencias fomentadoras precisa ser repensado. O sofrimento humano não vale o status adquirido e está acima dos bens simbólicos e materiais eventualmente adquiridos, pois se revelarão efêmeros. É preciso a reflexão crítica sobre a ideologia produtivista. Esta foi assimilada e naturalizada por muitos. É simples entender: os adaptados e os que têm sucesso na corrida pelo Lattes tornam-se, conscientemente ou inconscientemente, seus defensores mais renitentes. Claro, eles têm o que perderem! Mas, também eles estão submetidos ao controle e sujeitos às doenças psíquicas e físicas decorrentes do modus operandi produtivista. Será que vale a pena?! De qualquer forma, registro minha solidariedade aos “improdutivos”!


[1] SGUISSARDI, Valdemar; SILVA JÚNIOR, João dos Reis. Trabalho intensificado nas federais: pós-graduação e produtivismo acadêmico. São Paulo: Xamã, 2009, p. 224.

[2] Email recebido. Omitido a autoria por consideração ética.

[3] Ver “A corrida pelo Lattes”, publicado na REA, nº 46, março de 2005, disponível em http://www.espacoacademico.com.br/046/46pol.htm

[4] “Parecer sobre o relatório de Atividades do Prof. Maurício Tragtenberg”, de 04 de outubro de 1991, assinado por Eduardo O. Chaves, Fermino Fernandes Sisto e Newton Aquiles Von Zuben. Citado em SILVA, A.O. Maurício Tragtenberg e a Pedagogia Libertária. Ijuí: Editora da Unijuí, 2008, p. 281.

[5] A este respeito, a professora Agueda Bernadete Bittencourt Uhle, fez uma observação pertinente: “Ocorre-me agora perguntar o que teria acontecido com a produção de Maurício Tragtenberg se ele tivesse, nos anos 80, sido atingido por tal lógica política. O que teria acontecido com seus mais de 200 artigos na coluna No Batente, do jornal Notícias? É evidente que publicar uma coluna semanal no Notícias Populares não tem qualquer valor para Capes e CNPq, não qualifica o programa de pós-graduação no qual atua este intelectual”. In: UHLE, Agueda Bernadete Bittencourt. Sobre administração e avaliação: um a conversa com as ideias de Maurício Tragtenberg. Tudo Flui – Revista da Aduel. Londrina (PR), v. 5, nº 1, p. 13-10, jan./jun. 2001, apud em idem p. 282.

12 comentários sobre “Produtivismo acadêmico – Os Improdutivos!

  1. Educação que não transforma o chão onde pisa não serve para nada…então, denada adianta “qualis” e outras coisas que não forma uma consciencia crítica, relexiva e transformadora e denuciadora radical da reprodução das relaçoes de dominação.

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  2. O sistema de ensino no Brasil virou isso, parceiro. Lamentavelmente.
    A coisa tem problema desde os primeiros anos na escola onde os alunos
    e (inclusive alguns) professores (do ensino base) não sabem ruminar.
    É tudo muito quadrado! O ensino tornou-se quadrado!
    Nas faculdades, sobretudo em relação a área de humanas, o aluno não
    é pensador crítico, “é uma coisa-papagaio”.

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  3. Excelentes colocações. Na Unicamp sempre fizemos um relatório trienal. No último que fiz recebi um parecer reconhecendo meu trabalho mas me solicitando que publicasse em revistas melhor “situadas” no Qualis. Respondi que prefiro ser lido e que não preciso que uma revista me qualifique: publicando numa revista, eu qualificava a revista. Pedi aposentadoria, isso em 2003. De lá para cá, os “acadêmicos” burocratas aumentam as exigências sempre que já estejam com tudo pronto para usufruirem dos financiamentos. Livre desta competitividade imbecil, continuo produzindo artigos e fazendo palestras, inclusive no exterior, sem registrar em lugar algum: tenho agora a liberdade acadêmica de produzir minhas reflexões. Os “pares” que inventam critérios (aliás como eles classificam as revistas no Qualis sem lê-las todas? com base no lugar onde publicam seus artigos…) não são pares, eles se têm por concorrentes… O problema maior, me parece, é o discurso da servidão voluntária. Quando fui Pró-reitor na Unicamp acabei chamando o colega pró-reitor de pós-graduação de representante da Capes na Universidade, porque não tinha qualquer projeto próprio para a pós-graduação…Pelo que leio, tudo deve ter piorado. João Wanderley Geraldi

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    • Infelizmente, parece que sim. A sua pergunta é a mesma que a minha: Como “qualisficar” revistas que não são lidas de fato, pois são apenas depósito de textos para meta-qualis. A sua indagação é igualmente importante: as pós-graduações são de suas universidades e não da CAPES. Será que os avaliadores da CAPES conhecem todas as demandas e singularidades locais para definir critérios que invisibilizam tantos outros aspectos socialmente importantes e necessários que mantém a circularidade Universidade-Sociedade? Será que o burocratismo da meta-qualis forma intelectuais ousados? Será que há seleções de editais que valorizam, de fato, uma boa ideia? Que as ideias sejam relevantes! Que as revistas sejam, de fato, lidas para serem avaliadas e não apenas cifradas por conta de conselhos editoriais fake ou outros dispositivos técnicos que retiram a necessidade de serem lidas! Será que não se percebe que a ousadia intelectual está morrendo à medida que um colega é punido por ser forçado a ser monotemático para ser relevantes para fomentos? Quantas ideias foram desperdiçadas por conta da “inadequação” de um currículo? Quantas boas ideias já foram assumidas por “currículos” que não as conceberam?!…

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  4. Esta outra poesia de Otton Bellucco é melhor ainda, pois faz eco à ideia de sofrimento auto-imposto a que se refere o artigo de Ozaí. Vejam:

    FERA DE CIRCO

    Uma brisa de melancolia
    se avizinha de mim…
    Anuncia o vendaval
    da consciência rústica
    de corrosão crítica
    à maledicência,
    à ironia refinada,
    à polidez de fachada
    da fera atávica
    que nunca se revela plena,
    não expõe suas angustias
    e me usa como tema
    de tramas escusas.
    Fico indefeso,
    mas por pouco tempo…
    Vivo entre feras,
    assim aprendo:
    de baixo enlevo
    e tristes tópicas…
    Feras que julgam, subjugam,
    submetem-se por vontade própria
    e desconhecem a brandura,
    o acolhimento, a ternura
    de meu ser, que sei oferecer
    de um jeito próprio
    em minha tapera…

    Aí…, és fera polida,
    fera estulta,
    fera provida
    de fardos, fados
    e dardos autoimpostos!…
    Aê…, fera esculpida
    pela estultícia,
    pela covardia,
    não enfrentas, de fato,
    o que te atiça,
    fustiga tu’alma,
    adoece teu espírito!…
    És o que és: cativa
    da lógica endêmica,
    da atmosfera epidêmica
    da selvageria acadêmica;
    absorta pela vaidade,
    insensível à diversidade
    de fazeres, lógicas,
    pulsos d’arte,
    estados d’alma,
    razões práticas…

    És fera estranha:
    selvática, mas domada
    por volição insana
    de ser celebrada
    no espetáculo do circo
    que te oferta uma jaula.
    Aprenda comigo
    é o que te digo:
    sou rústico,
    sou lúcido,
    sou digno;
    um amigo,
    um abrigo,
    repertório de tipos,
    livre de teu circo
    repleto de sofrimentos.
    Fica comigo!…
    Sai desta tormenta!
    Não sê punitiva
    contigo mesma!…
    Não sê vingativa
    por minha liberdade.
    Ainda que tardia,
    sê pessoa rara:
    rústica,
    lúcida,
    às claras!…

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  5. Toda denúncia cai no vazio quando os nossos pares em sua maioria aderiram ou aderem a esse sistema. E vem mais :na UFSCAR esta em incubação um Projeto intitulado “Análise da Produção Científica sob a Perspectiva Bibliométrica e Cientométrica” assisti sua apresentação e na minha avaliação se coloca como uma tentativa “sofisticada “de manter o controle conceitual das produções acadêmicas via uma pseudo “epistemologia” uma métrica para o pensar, um controle para o fazer…

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    • Atualmente, a estrutura institucional que concebe mérito para a carreira no magistério superior tem empurrado os docentes para um individualismo produtivista que exclui o aluno, a docência e a extensão como focos também necessários de formação e circulação dialética Universidade-Escola-Sociedade, ou pior, faz com que ensino e pesquisa tornem-se mutuamente excludentes na formação do profissional vindouro e na prática formadora do docente hodierno. Trata-se de um problema realmente estrutural. Poucos conseguem nadar contra a corrente do produtivismo acadêmico que exclui o aluno do processo, e discrimina e estigmatiza professores num novo reencenamento social de jogo cortesão, que não forma intelectuais ousados e desperdiça talentos e boas ideias em nome do imediatismo monotemático.

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  6. Tanto absurdo na forma de aferir mérito sempre me faz lembrar que são nossos pares que criam tais critérios a partir de seus umbigos. Então, temos uma guerra de umbigos. Qual umbigo será hegemônico no campo acadêmico neste ou naquele momento? O que é relevância? Relevância para que? Para quem? Perguntas básicas precisam ser feitas. Por ora, enquanto nenhuma resposta parece plausível, compartilho o desagrado de Otton Bellucco.

    DOUTO ESTULTO

    Conhecimento que não ensina,
    conhecimento que não acolhe,
    conhecimento que apequena,
    conhecimento que humilha,
    doutamente,
    afasta de si os talentos,
    em potência, na semente.

    E depois tu não entendes
    porque tantos pastores
    conquistam suas ovelhas,
    alimentam seus rebanhos
    com versos de salvação,
    apoucando a tua seara,
    arrogante, da razão…

    Eles ofertam a acolhida
    que falta em tua mente,
    enquanto tu humilhas
    o nobre fruto
    contido na semente
    para seguir, estulto,
    a tua vaidade inconsequente…

    Se pensas em combate,
    precisas d’outras hastes
    p’ra teu acadêmico estandarte:
    alegria que contagia;
    arte que reparte;
    mente que compartilha,
    sem douta vaidade…

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  7. Antonio
    Bom dia
    Não conheço a carreira docente superior, portanto, seria infeliz (pretensioso) emitir opinião acerca do assunto. Fui (permaneci) discente em três momentos distintos em instituição de ensino superior (Universidade particular), na qual estive como representante discente, de forma voluntaria, junto a dois conselhos em caráter oficial e em alguns momentos fomos (livre acesso aos interessados) participes de reuniões informais com Professores, Diretores de Centro e mesmo com Pró-Reitores da instituição no intuito de se construir uma Academia democrática, de qualidade e inclusiva. Conquistamos (conquista parece que perdida) junto com os demais segmentos da Universidade até o direito de escolha dos Diretores de Centro e dos Coordenadores de Curso. A escolha dos Chefes de Departamento passou a ser feita entre os pares. (não lembro com certeza, mas acho que para o cargo de Reitor em momentos que não estava mais matriculado se obteve a votação de lista tríplice) Confesso que esse democratismo (opinião pessoal) em nada melhorou a instituição, ao menos no tocante a sua democratização, leia-se federalização, luta essa dos estudantes de Caxias do Sul (RS) e região que tem mais de 40 anos e até aqui estéril. O alargamento das possibilidades de participação em Diretórios Acadêmicos e DCE com livre funcionamento e sem eleições tuteladas reduziu paradoxalmente em muito a participação dos estudantes no Movimento Estudantil. Segundo consta nos jornais locais é de mais de 40 mil o número alunos regularmente matriculados na Universidade, sendo que pouco mais de 3 mil votaram nas eleições de Dezembro de 2012, para o DCE e DA(s). Penso ser aqui que se encaixa o fulcro da questão, ou seja, que ensino se tem nas instituições de ensino de nível superior no Brasil? É ele inclusivo, critico, enseja a participação, o trabalho em grupo, enfatiza modelos cooperativos? O Brasil continua com milhões de analfabetos, extensivo aos analfabetos funcionais, temos milhões de trabalhadores infantis fora da Escola! Mantemos ainda insatisfatórios níveis de desempenho escolar, alta repetência e sobremodo abando escolar, principalmente no ensino médio, quando milhões de jovens ingressam no mercado de trabalho formal. No informal muitos, que ainda estudam, já estão de há muito tempo. Será que a Universidade brasileira, o MEC, os governantes de plantão poderiam olhar com sinceridade para esse cenário e ver formas coletivas de interagir? Penso, respeitosamente que não. A Universidade pelo visto se basta a si própria (com exceções) e se afasta do social para viver na utopia burocrática!
    Cordialmente
    Pedro
    Caxias do Sul, 9 de dezembro de 2012.

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