Parabéns, Corinthians! (O jogo como metáfora do campo)

http://www1.folha.uol.com.br/esporte/2017/02/1861540-arbitro-que-errou-no-classico-ficara-sem-apitar-jogos-da-cbf.shtml
Fonte: Folha de S. Paulo, 24.02.2017.

Todos viram! O juiz errou feio na interpretação do lance que resultou no segundo cartão amarelo e a consequente expulsão do jogador corintiano. Só ele, em sua cega convicção, não viu! Ou melhor, viu errado! Já os filósofos antigos ensinam que os sentidos podem iludir a razão. Neste caso, porém, o árbitro poderia ter superado a ilusão de ter visto se tivesse a humildade de ouvir e ponderar o que os outros viram, especialmente do seu colega, cuja função principal era contribuir com o seu trabalho. Sua decisão lhe custou caro!

Errar é humano, mas depende de quem erra! Erros podem ser encobertos, justificáveis, perdoados. Mas sempre causam consequências. O poder da autoridade pressupõe responsabilidade. Quanto maior esta, menor a transigência em relação ao erro e maiores as consequências. Felizmente para o Corinthians, tudo acabou maravilhosamente bem! Pior para o Palmeiras que não soube explorar a vantagem de ter um jogador a mais e, segundo os entendidos em futebol, seu técnico fez substituições equivocadas. Prá complicar ainda mais a situação do alviverde, um erro individual terminou por selar a derrota no jogo. Errar é mesmo humano! Mérito do alvinegro que soube segurar o ímpeto do adversário jogando com humildade e sabedoria na defesa. O Palmeiras teve mais posse de bola, esteve mais presente no campo do oponente, mas pouco criou e quase não ameaçou a cidadela do gigante Cássio Ramos!

Erros são importantes na vida humana! São fontes de aprendizado. Autoridades são destituídas e punidas pelos equívocos cometidos, mas, ainda assim, podem aprender algo e crescer enquanto seres humanos. A voz embargada do juiz em entrevista após o jogo, reconhecendo o erro diante das evidências, demonstra arrependimento e receio quanto ao futuro profissional. É lícito imaginar que deva ter aprendido com o episódio. Certamente não é o mesmo ser humano de antes! Os jogadores e a comissão técnica do Palmeiras devem ter aprendido algo com os erros cometidos que, apesar dos esforços, determinaram sua derrota no primeiro jogo do centenário da histórica disputa com o rival do Parque São Jorge!

O que isto nos ensina? O ocorrido no clássico Corinthians X Palmeiras nos oferece uma metáfora da vida no campo acadêmico e intelectual. Aqui, campo não é o local onde acontece o jogo de futebol, mas o conceito do sociólogo francês Pierre Bourdieu.[1] No campo, nos posicionamos como jogadores que lutam para manter ou conquistar posições, isto é, aumentar o capital específico gerado neste campo. Esta luta, o jogo, tem caráter concorrencial e, como tal, produz constrangimentos. Quem participa do campo é constrangido a jogar, a lutar.[2] A alternativa é cair na obscuridade, no nada. Não jogar significa morrer socialmente!

O discurso da necessidade de “jogar o jogo” oferece a opção da reclusão, ou seja, o isolamento e suicídio intelectual. É comum as falas autorizadas e bem instruídas que impõem estas opções como as únicas possíveis. Falam como juízes que ditam sentenças. Em geral, sem questionar as regras do jogo, sem reflexão sobre quem decide, quem são os jogadores e as posições que estes ocupam no campo. O ultimato dos pragmáticos e detentores de posições dominantes no campo expressa um falso dilema.

De fato, a decisão de não “jogar o jogo” significa abandonar a luta no campo. Se analisarmos bem, talvez esta seja a opção da maioria: os que não estão nem aí para as exigências de publicar, os que não estão nas pós-graduações, os que se encastelam na comodidade do cotidiano e passivamente se restringem ao desempenho mínimo das atribuições acadêmicas. Para estes, não “jogar o jogo” é uma postura cômoda! O comodismo é vantajoso para a minoria ativa que se aferra ao jogo na tentativa de manter ou galgar posições na concorrência no campo. É ainda mais proveitoso para os indivíduos cujo DNA e caráter nutrem-se da tensão produzida no ambiente concorrencial e, também, dos detentores de postos dominantes no campo![3] Se a maioria decidisse interferir no jogo e questionar, seria muito mais difícil manter posições e legitimar-se. Na verdade, o jogo se mantém porque interessa aos que participam, seja porque gera capital simbólico (prestígio), vantagens materiais ou, ainda, pela servidão voluntária dos que aceitam “jogar o jogo” pela illusio[4] que este oferece! Da crença no jogo deriva a ilusão, o encantamento!

Voltemos ao campo de futebol. Neste, também há regras, autoridades, agentes que ocupam posições dominantes e dominadas, etc. O jogo não é jogado por todos da mesma forma, nem todos tem o controle. No campo, a autoridade máxima interpreta a regra, decide pelo olhar e pode favorecer ou prejudicar. Os participantes do jogo podem desobedecer as regras, sob o risco de punição. Há comportamentos que burlam as normas e atropelam a ética. Longe dos olhos do juiz, tudo é válido: gol de mão, cotoveladas, desrespeito com o colega de profissão –a ponto de causar lesões corporais graves – sem contar as simulações que induzem o árbitro ao erro, etc.

O reino do vale tudo parece normal – e naturalizado. Há quem louve a “malandragem”, a esperteza do jogador. Talvez tão grave quanto o erro do juiz tenha sido a acusação interessada do jogador que, injustamente, recebeu o segundo cartão amarelo – fortalecendo a certeza do árbitro – e o silêncio, não menos interessado, do time palmeirense e comissão técnica. Será ingenuidade esperar que alguém do Palmeiras – entre tantos jogadores experientes e respeitados – alertasse o juiz? Seria um argumento muito difícil de desconsiderar; a história do jogo teria sido outra – independente do resultado –e o juiz teria sido poupado das consequências do seu ato!

Novamente, a metáfora é válida para o campo acadêmico. Neste, o “jogar o jogo” exige, muitas vezes, a não observância das regras e da conduta ética. O plágio, o turismo acadêmico, o publicar por publicar, as avaliações interessadas, os acordos de bastidores, a utilização de recursos financeiros e políticos para manter a dominação, as práticas corporativistas e individualistas dissimuladas sob o véu do discurso cientificista, do bem-geral e comum, da missão da universidade pública, etc., estão tão presentes quanto as estratégias utilizadas no campo de futebol – e fora dele – para obter a vitória! Será ingênuo esperar que os que “jogam o jogo” tenham atitudes críticas e autocríticas, e não utilizem artifícios escusos para se darem bem no jogo? Ou, como no futebol, vale tudo?!

O Corinthians, considerando as circunstâncias, fez por merecer o resultado! Parabéns! Seus jogadores podem se orgulhar do feito. Será que no campo acadêmico sempre podemos nos orgulhar das nossas conquistas na concorrência que beira as raias do absurdo? Não passou do momento de repensarmos o jogo, suas regras e a nossa inserção no campo? Ou só nos resta a rendição aos ditames dos que se consideram semideuses, sentados confortavelmente no olimpo, o servilismo voluntário ou a illusio?! Ao que parece, Bourdieu tem razão: estamos condenados a lutar; mas há meios e meios. A questão, portanto, pode ser resumida à relação meios e fins. Seja no campo do futebol ou no campo acadêmico, a não observância dos meios legítimos e éticos podem resultar em sanções e crises de consciência. Todos estão sujeitos à advertência ou à expulsão!

 

Referências

BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2000.

BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996.

OLIVEIRA, Pedro Paulo. Illusio: aquém e além de Bourdieu. Mana, Rio de Janeiro, v. 11, n. 2, p. 529-543, out. 2005. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-93132005000200008&lng=en&nrm=iso&gt;. Acesso em 26 fev. 2017.

ORTIZ, Renato. Pierre Bourdieu: Sociologia. São Paulo, Ática, 1983.

 

TEXTOS CONEXOS

Campo acadêmico, ideologias e incoerências, 01.08.2007.

O plágio em tempos de internet, 14.11.2007.

Somos todos delinqüentes acadêmicos? (1), 06.09.2008.

Somos todos delinqüentes acadêmicos? – Entre a resistência e a adaptação (2), 10.09.2008.

Somos todos delinqüentes acadêmicos? – Entre a resistência e a adaptação (3), 13.09.2008.

Somos todos delinqüentes acadêmicos? – Ainda sobre o Lattes (4), 24.09.2008.

Somos todos delinqüentes acadêmicos? – Efeitos e conseqüências (5), 01.10.2008.

Somos todos delinqüentes acadêmicos? – Concluindo… (6), 08.10.2008.

Qual é o Qualis da sua revista?, 19.09.2009.

Revista Mediações: produção e produtivismo acadêmico, 24.10.2009.

Por que e para que publicar?!, 05.03.2011.

Trabalho intenso na pós-graduação: servidão voluntária?, 06.08.2011.

Produtivismo acadêmico – Os Improdutivos!, 08.02.2012.

Produtivismo acadêmico – Sobre as dificuldades de escrever!, 15.12.2012.

Produtivismo acadêmico – Sobre as dificuldades de escrever (2), 29.06.2013.

 

[1] Para Bourdieu (1983, p. 122), o campo é um ““sistema de relações objetivas entre posições adquiridas (em lutas anteriores), é o lugar, o espaço de jogo de uma luta concorrencial”.

[2] Bourdieu afirma: “A única liberdade absoluta que o jogo concede é a liberdade de sair do jogo, por meio de uma renúncia heróica a qual, a não ser que crie um outro jogo, não obtém a ataraxia senão à custa daquilo que é, do ponto de vista do jogo e da illusio, uma morte social” (BOURDIEU: 2000, p. 85).

[3] Como observa Bourdieu: “pode-se dizer, indiferentemente, ou que os agentes tiram partido das possibilidades oferecidas por um campo no intuito de exprimirem e de saciarem suas pulsões e desejos, eventualmente sua neurose, ou que os campos utilizam as pulsões dos agentes constrangendo-os à submissão ou à sublimação, fazendo-os se dobrarem diante das estruturas e das finalidades que lhe são imanentes” (apud OLIVEIRA, 2005, p. 537).

[4] Esta palavra se origina de ludus (jogo). Para Bourdieu (1996, p. 139-140) a illusio “poderia significar estar no jogo, estar envolvido no jogo, levar o jogo a sério. A illusio é estar preso ao jogo, preso pelo jogo, acreditar que o jogo vale a pena ou, para dizê-lo de maneira mais simples, que vale a pena jogar […] Illusio […] é dar importância a um jogo social, perceber que o que se passa aí é importante para os envolvidos, para os que estão nele […] É ‘estar em’, participar, admitir, portanto, que o jogo merece ser jogado e que os alvos engendrados no e pelo fato de jogar merecem ser perseguidos; é reconhecer o jogo e reconhecer os alvos […] Os jogos sociais são jogos que se fazem esquecer como jogos e a illusio é essa relação encantada com um jogo que é o produto de uma relação de cumplicidade ontológica entre as estruturas mentais e as estruturas objetivas do espaço social”. Sobre este conceito em Pierre Bourdieu, sugiro também a leitura de “Illusio: aquém e além de Bourdieu” (OLIVEIRA, 2005).