O silêncio dos homens

A criança chora no portão da escola. O pai solicita a ajuda da educadora para convencer o filho a entrar. Carinhosamente, ela argumenta e procura acalmar a criança. Por que o menino resiste? Medo, insegurança? Ele continua a chorar. Então, a senhora argumenta: “Homem não chora!”

Esta cena me fez lembrar o documentário O silêncio dos homens*. Afinal, o que é ser homem? O que um pai faz com um filho motivado pelas exigências da masculinidade? O que o homem é capaz de fazer por considerar que é a maneira certa de agir enquanto macho-hétero? E se for um homem negro, aumenta o grau de exigência?

A masculinidade envolve medos e vulnerabilidades dissimulados pelos estereótipos, linguagem agressiva, manifestações de violência, etc. O homem frágil se esconde na aparência e padrão que a sociedade exige. Mas, em silêncio, ele sofre.

Paradoxalmente, este silêncio se manifesta pela fala e atitudes. A fala masculina é uma forma de reafirmar o seu poder. Os homens falam o tempo todo, mas esta fala nada revela de si mesmo. É uma espécie de retroalimentação do machismo. Este tipo masculino se refugia na objetivação do corpo feminino, na rejeição homofóbica de outras formas de amar, na autoafirmação mútua com os seus parças. Aqui, a amizade, a convivência com outros homens, não significa intimidades. Os homens não falam de si, mas da projeção que incorporam sobre o ser homem na sociedade. Raramente, esta fala assume o desafio de discutir a masculinidade e suas consequências – para o indivíduo e para as relações que ele estabelece. Isto não ocorre naturalmente, nem por acaso. Ser homem é também ocupar uma posição privilegiada, expressa possibilidade de dominação e poder. A família, a religião e a educação, bem como o chamado “mundo corporativo”, reforçam e legitimam seu comportamento individual e social.

Não obstante, os homens permanecem em silêncio. Mal se conhecem e tendem a naturalizar comportamentos e atitudes socialmente determinados. Excetuando-se os que se encaixam bem no padrão de masculinidade predominante, incomodam-se e sofrem. Se veem pressionados a esconder os sentimentos que não harmonizam com o que se espera deles enquanto homens. “Homem não chora!” Manifestação das emoções são interditadas. Chorar, mas não em público; emocionar-se, mas não como uma mulher. A percepção subjetiva do feminino enquanto ser predominantemente emotivo é parte da formatação do homem em sua masculinidade.

Mas, como superar o silêncio dos homens? É preciso conscientizar-se de que a masculinidade pode ser tóxica e aceitar discutir os efeitos dela sobre a nossa vida – e também as consequências e críticas daqueles que, homens e mulheres, se adaptam ao padrão. Não é fácil ser o outsider, mas é necessário.

É necessário atentar para a diversidade que abrange a masculinidade. Ser homem branco não é o mesmo que ser homem negro. Quem silenciou o homem branco? A condição de negro não é em si uma forma de silenciamento? Um homem da classe média experiencia uma forma de ser homem diferente do jovem da periferia – embora ambos compartilhem do padrão de masculinidade. Quais as opções que um jovem negro da periferia tem? A masculinidade negra caminha paralelamente com o racismo. Viver sob o medo é o comportamento padrão das assim chamadas “minorias”.

Por fim, algumas questões para a reflexão. Como educar os homens para serem pais que compreendam os dilemas e sofrimentos inerentes a um certo padrão de masculinidade? Somos responsáveis pelos seres humanos que geramos. Como nos prepararmos para sermos pais diferenciados, compreensivos e incentivadores de uma prática que rompa os estereótipos sobre a masculinidade? Como as mulheres podem contribuir enquanto mães? Qual é a percepção delas sobre os homens? Por que é tão difícil rompermos o silêncio e assumir as nossas emoções e fragilidades enquanto seres humanos?

Talvez o primeiro passo seja reconhecer o machismo entranhado em nosso ser e nos reeducarmos. É necessário, sobretudo, agirmos: não aceitar nem reforçar posturas machistas, sejam nos outros, sejam as nossas próprias atitudes. Essa reeducação é também uma questão psicológica e subjetiva. Quanto mais nos conhecemos e nos expomos, mais nos sentimos seguros. A insegurança nada mais é do que o medo que habita nosso ser; medo das nossas próprias emoções, medo do outro. É preciso discutir a realidade, mudar o comportamento e quebrar o silêncio. É possível ser homem para além dos padrões sociais que nos moldam.

A masculinidade também é socialmente construída. Parafraseando Simone de Beauvoir**, talvez não seja um disparate afirmar que “Ninguém nasce homem, torna-se homem”. A fala, ainda que bem intencionada da educadora, é um exemplo. O documentário O silêncio dos homens nos mostra como a mentalidade machista é inculcada desde a mais tenra idade. Vale a pena assistir, refletir e, sobretudo, questionar – inclusive a nós mesmos, enquanto homens.


* Disponível em: https://youtu.be/NRom49UVXCE?si=ts73gB7axOo_Coje Sobre o documentário: https://papodehomem.com.br/o-silencio-dos-homens-documentario-completo/  

**“Ninguém nasce mulher, torna-se mulher”. In: BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo; tradução Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009, p. 361.

16 comentários sobre “O silêncio dos homens

  1. O texto do Prof. Ozaí – “O silêncio dos homens” – é claro: precisamos (nós homens) repensar nossa postura no debate sobre a igualdade entre homens e mulheres. Nesse debate precisamos repensar não só o conceito de Mulher, mas também de Homem. Pois, tudo indica que ambos, são conceitos construídos socialmente e, dessa forma, poderemos conceitua-los novamente. Embora, na atualidade experimentamos o retrocesso da igualdade de gênero. Pois, atualmente, existe uma “massa” considerada de cidadãos que se reconhecem como conservadores e defensores da família tradicional. Nesse caso, parece que os mesmos, entendem por família tradicional, justamente, a afirmação do Homem enquanto indivíduo superiora Mulher. Nessa perspectiva, HOMEM NÃO CHORA. Não obstante, deveríamos CHORAR por fazermos partes de uma sociedade que não valoriza a si mesmo ou não valoriza o ser humano.

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      • Joao Paulo de Oliveira.

        O texto , para mim, aborda uma questão cultural, educacional de um passado extremamente machista, que , ainda, está enraizado na sociedade. ”O homem chora sim”. É preciso romper os comportamentos, as atitudes, o machismo (que se tornou cultural), a discriminação e o racismo. Estamos em outro momento, novas realidades. Não podemos continuar com dois comportamentos, brancos e pretos. Quanto ao educar para serem pais, é uma outra questão remanescente, incrustada e cultural de uma sociedade retrógada. Pais são pais, homem e mulher, ambos são “cuidadores”, são “cumplices” são responsáveis. Se faz necessário uma reeducação , compromisso, compreensão da atualidade, novos comportamentos e não sentir vergonha de do que é. Nós choramos, seja homem, mulher, criança, adulto, idoso. Choramos por qualquer coisa.

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  2. Belo texto Professor, uma excelente reflexão pra que primeiro nós, como homens, possamos entender e compreender qual o nosso papel, obrigado pela sua contribuição muito importante! Ahh, homem que é homem chora sim, e não há nenhum problema nisso! Abraço!

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  3. Um artigo excelente, que aborda um tema fundamental, infelizmente ainda restrito a poucos âmbitos: a necessidade urgente de desconstruir o padrão dominante de masculinidade e construir homens livres do aprendizado do machismo, da violência, do poder sobre os outros/outras. As iniciativas mostradas no documentário que você menciona no artigo precisam ser multiplicadas. O questionamento da visão tradicional e retrógrada dos papeis de gênero, o aprendizado de novas formas de ser e de relacionar-se tem que estar desde a infância, na escola, na formação profissional e universitária, na vida privada e nos espaços coletivos de convivência e participação cidadã. Suas reflexões são uma contribuição relevante ao debate. Estou divulgando seu artigo.

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  4. Um texto excelente, que aborda um tema fundamental que ainda está restrito a poucos âmbitos: a necessidade urgente de desconstruir o padrão predominante de masculinidade. Baseado no machismo, na agressividade, na coisificação das mulheres, na violência micro e macro do homem para se impor em qualquer ambiente, esse padrão é reproduzido desde a infância (“homem não chora”) até a idade adulta e por vários meios, em ambientes privados e públicos. O vídeo que você menciona mostra várias iniciativas importantes de reverter essa socialização, mas estão longe de ser suficientes. Seu texto contribui muito para ampliar o debate. Estou divulgando-o. Obrigada.

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    • Bom dia! Muito obrigado por ler, comentar e divulgar. Suas palavras são fundamentais para a minha reflexão e dos/as leitores/as.
      Seu comentário aparece como anônimo. Por favor, pode se identificar? Agradeço. Abraços e tudo de bom,

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  5. Logo no início do texto quando a professora diz “Homem não chora!”, eu me perguntei: poxa, ainda temos professoras que agem assim? Pois ela, professora, ainda reproduz o machismo dominante. Age mais como mulher submissa e mãe e menos como função-docente.  Ozai, você se lembra quando eu escrevi um breve ensaio “O machismo das mães”?Pois é, do Brasil ao Afeganistão, dos Estados Unidos à Coreia do Sul e a Argentina de Milei, ainda são mães que reproduzem consciente ou inconsciente a tradição patriarcalista, repressora dos afetos dos homens.  Ou seja, não são os homens que educam, mas esão eles (cultura machista) que encarregam as próprias mães de reprimirem os afetos dos meninos, e a psicossexualidade das meninas.

    Ainda é assim, infelizmente. (Mas eu -e a classe média intelectualizada- vive na bolha alienada, achando que “progredimos”, daí minha surpresa com este tipo de machismo dominante).  Com o avançao do conservadorismo, do reacionarismo, made in fascismo (extremismo-direita), temos vários sintomas deste atraso psicossocial, cultural e moral-ético nas relações humanas em nossa época. SINTOMAS: A ex-primeira dama, Michele, disse as mulheres supostas conservadoras que sejam apenas “ajudadoras” do marido. Dez mulheres deputadas votaram contra a igualdade salarial entre mulheres e homens, em 2023. (mas acho que elas não gostaria de ter seus salários de deputadas mais baixo do que dos deputados). Uma vereadora ou deputada do nordeste disse numa entrevista que ela fazia a politica do marido, que ele é o “cabeça”, ela é apenas o coração, ou seja, ela está feliz de ser subserviente à ele, só porque é macho?

    Suspeito que se investigarmos a fundo, até nas universidades do Brasil temos professoras-doutoras que são subservientes aos seus maridos, e educam(treinam) seus filhos para “não chorarem, pq homem não chora”, entre outros supostos valores de educação judaico-cristã-islâmica.  Suspeito que ser professora, mestre e até doutora, não é suficiente para remover marcas de machismo impregnadas no seu aparelho psíquico, principalmente se estas colcam a crença e valores religiosos fundamentalistas-patriarcais acima do conhecimento crítico e sistemático. Noutras palavras, parece que a Função-Docente não consegue triturar as marcas ativas para reproduzir o machismo tradicional ou milenar. Nos últimos cinco ou mais anos, me vi descrente da ideia de progresso na humanidade, tendo em vista tais sintomas aqui e em várias partes do mundo. (Somos progressistas, mesmo? Progredimos ou avançamos no campo cientifico-tecnológico, mas não nas relações humanas mais igualitárias).  Mas, louvo sua (Ozai) esperança e ativismo literário-de-educador, investido de pensar uma forma de educação (reeducação?) que nos liberte deste tipo de atraso tanto nos homens como nas mulheres.

    Talvez o machismo tóxico, o machismo politico de extrema-direita e de extrema-esquerda, o machismo dos pastores que vociferam e até conseguem resultado de doutrinação que reproduz o machismo (como eles/elas odeiam o movimento feminista!), sejam sintomas de desespero, pois no fundo sentem que estão com dias contados. Valeu pelo excelente ensaio. Continue escrevendo e lutando. Abraço.  

    Raymundo de Lima
    raylima234@gmail.com

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  6. Gostei do de seu texto. Ontem assisti no ICL entrevista com Maria da Penha e, após o debate entre mulheres tbm incrédulas e duvidosas, mas cheias de expectativas e vontades de acertar. Esse tipo de discussão, como demonstrou tem várias facetas e nenhuma delas leva ao marasmo. Quem debate tem vontade de acertar. Essa a melhor assertiva e conclusão que cheguei. Ambos os sexos, ou mais levam a isso em qualquer sociedade, nesse nosso ritmo on line.

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