Notas sobre a intolerância

O julgamento de Sócrates expressa um caso clássico de intolerância. Como isto foi possível numa sociedade politeísta e democrática? De fato, a intolerância é tão antiga quanto o humano e sua aversão ao Outro, ao diferente, ao estrangeiro.

A defesa da tolerância indica um pressuposto de superioridade? Quem tolera o faz porque está em condição de assim agir. A tolerância, portanto, incide sobre uma relação desigual? Por outro lado, é possível que a tolerância seja imposta? Neste caso, contraditoriamente, não seria um ato de intolerância? Ou podemos concluir que a tolerância é um efeito positivo da intolerância?

Historicamente, os perseguidos podem, sob novas circunstâncias, se revelarem perseguidores, intolerantes. Na linguagem freireana, os oprimidos podem agir como opressores. A cristandade, originalmente perseguida, erigiu uma sociedade perseguidora. A inquisição católica foi o fruto mais perverso da intolerância gestada no seio cristão e em nome de Deus. Contudo, isso não se restringiu apenas ao catolicismo: os fundamentalismos islâmicos e judaico também revelaram e produziram correntes de intolerância. Os calvinistas e outras denominações dissidentes da Igreja Católica, no esteio da Reforma Protestante, não foram menos capazes de evitar o fanatismo intolerante. No caso do judaísmo, talvez o exemplo mais clássico seja o do filósofo Baruch Spinosa, excomungado pela autoridade religiosa judaica do seu tempo.

Não obstante, a tolerância sobrevive às situações de intolerância dominante. No final, o intolerante mostra-se incapaz de construir. Seu rastro de destruição persiste enquanto sua capacidade de se impor pela violência não se exaurir. É certo que ele conta com o apoio do séquito, o medo da maioria e o silêncio conivente de muitos. A intolerância tem duplo fundamento: a certeza de expressar a verdade absoluta, indubitável; e a crença de que esta deve ser imposta a todos, pela força. Ora, embora possa causar grandes estragos e provocar dor e sofrimento, no fundo tais fundamentos se revelam frágeis. Quanto mais se faz necessário recorrer à violência, mas claro fica seu caráter despótico. Nenhuma crença subsiste se sustentada apenas em meios violentos.

O que alimenta a intolerância? O medo, a insegurança e o ódio ao Outro. Neste sentido, sempre haverá a possibilidade dela se impor e, até mesmo, contar com apoio de grupos da sociedade ou conquistar, ainda que temporariamente, corações e mentes da maioria. O nazismo, o fascismo e as atuais manifestações racistas e xenófobas, assim o provam. Por isso, mais do que combater o intolerante, é preciso atentar para as causas geradoras e que nutrem a intolerância.

É preciso, ainda, levar em consideração a intolerância dos que se consideram tolerantes, mas, de fato, são hipócritas que se imaginam superiores e possuidores da certeza histórica. Paradoxalmente, a tolerância pode se revelar opressora.

Por fim, é necessário atentar para as formas autoritárias que assumiram, à maneira religiosa, certas ideologias laicas e utópicas. Também temos os nossos hereges, os nossos “reinados” de terror e a inquisição política levada a cabo pelos guardiões da ortodoxia em voga. Enfim, não tenhamos ilusões sobre a capacidade humana de cometer atrocidades indescritíveis em nome de boas causas – a exemplo do que fazem os fanáticos religiosos em nome de Deus.

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