Martin Buber e o conceito de Socialismo Utópico

“Um dos capítulos do Manifesto Comunista que maior influência exerceram e continuam a exercer sobre as gerações foi intitulado “Socialismo e Comunismo Críticos-Utópicos” (p. 9).*

Marx e Engels foram encarregados pela Liga dos Justos (Liga dos Comunistas) de elaborar o texto. A instrução é que constasse uma parte delimitando a “posição em face dos partidos sociais e comunistas” (Id.) O alvo era o socialismo francês, em especial, os fourieristas:

“No projeto elaborado por Engels, na ocasião, ainda não se fala em socialistas ou comunistas “utópicos”, mas somente em homens que propõem “grandiosos sistemas de reforma”, que, a pretexto de reorganizar a sociedade, pretendem conservar as bases da sociedade atual e, portanto, essa mesma sociedade”; por esse motivo, são qualificados de “socialistas burgueses” aos quais é preciso combater, qualificação que, na redação definitiva, foi aplicada a Proudhon” (p. 10)

Eis a redação do projeto final (apud in idem):

“Os “Sistemas” – entre os quais são incluídos os de Saint-Simon, Fourier e Owen (no projeto de Marx eram citados também Cabet, Weitling e até mesmo Babeuf como autores de sistemas semelhantes) – são considerados frutos de uma época em que a indústria e, portanto, também o proletariado, ainda não se haviam desenvolvido. Foi a impossibilidade de compreender e dominar o problema do “proletariado” que deu azo ao aparecimento desses sistemas, que só poderiam ser imaginários, fantásticos e utópicos e que, no fundo, propunham a abolição de uma diferença de classes que estava apenas começando a processar-se e que, um dia, iria provocar a “transformação geral da sociedade” (Id.)

Proletariado é a palavra-chave. O socialismo científico seria, portanto, a expressão dessa classe. Armado da ciência, isto é, do socialismo científico, é incumbido ao proletariado a missão redentora de superar o capitalismo. Ele é a chave para a transformação social revolucionária.

A crítica aos socialistas utópicos já havia sido lançada anteriormente por Marx, em sua obra contra Proudhon:

“Esses teóricos são utopistas; devem procurar a ciência em seu espírito, pois ainda não chegaram ao ponto de poder compreender os fatos que se desenrolam ante seus olhos e converter-se em seus porta-vozes” (apud in idem).

Em sua origem, as idéias de Marx, tornadas posteriormente em marxismo, expressam a certeza de que são “ciência”, daí sua pretensa superioridade. Não é por acaso que o socialismo marxista será classificado como “científico”. Segundo Buber, a crítica de Marx e Engels tende a desconsiderar as experiências dos socialistas utópicos no que elas “contém de positivo” e “fadado a perder seu valor e sua justificação teórica” (id). Para Buber, tal crítica encontra seu alvo em concepções presentes na própria Liga dos Justos:

“Doze anos após a publicação do Manifesto Comunista, Marx qualificou-as de “doutrina secreta”, formada por uma “mescla de socialismo ou comunismo franco-inglês e filosofia alemã”, à qual ele opunha “a compreensão científica da sociedade burguesa como única base teórica sustentável” (p. 11).

Martin Buber, Photo by Paul Schutzer, Israel 1960

A crítica aos socialistas utópicos representa, portanto, a luta de Marx e Engels pela prevalência das suas posições no campo do socialismo. Buber nota que:

“…o capítulo do Manifesto que impugnava o “utopismo” tinha o significado de um ato de política interna, na acepção genuína da palavra; concluir vitoriosamente a luta que Marx, secundado por Engels, sustentara inicialmente dentro da própria “Liga dos Justos” (e que agora se chamava “Liga dos Comunistas”) contra as demais tendências que se dominavam a si mesmas, ou que eram denominadas por outras, de comunistas. O termo “utópico” foi o último e o mais afiado dardo desfechado nessa luta” (Id.).

Trata-se, portanto, de uma luta entre concepções, na qual as palavra ganham significados influenciados pelos interesses em disputa. A linguagem também está sob disputa política. É claro que a concepção vitoriosa terá que destruir também do ponto de vista da semântica; as palavras cumprem função política-ideológica. Um elemento que comprova esta dinâmica está vinculado à própria elaboração de Engels – que cerca de dois anos antes da publicação do Manifesto Comunista escreveu um “intróito” à sua tradução de um fragmento das obras póstuma de Fourier. Neste momento, Engels aponta os limites do socialismo utópico, mas reconhece a sua fecundidade:

“O que os franceses e os ingleses já disseram há dez, vinte e mesmo há quarenta anos e o disseram muito bem, de maneira muito clara, numa bela linguagem – os alemães só agora, há questão de um ano, aprenderam e hegelianizaram ou, na melhor das hipóteses, tornaram a descobri-lo a posteriori, publicando-o de uma forma muito pior e mais abstrata, como se fosse uma descoberta nova” (apud, idem).

Engels reconhece o que Lenin denominou como uma das fontes do socialismo marxista. O próprio Engels afirma: “Não excluo disso os meus próprios trabalhos” (apud, p.11). Ele retomou este tema, trinta anos após o Manifesto Comunista, no livro contra Dühring, na parte publicada separadamente intitulada “Do socialismo utópico ao socialismo científico”. Então, ele resgata os argumentos do Manifesto Comunista. Segundo Buber:

“O que de imediato nos surpreende é que ele torne a ocupar-se somente dos mesmos três homens, “os fundadores do socialismo”, justamente dos que eram “utopistas”, “porque não podiam ser outra coisa, numa época em que a produção capitalista ainda se achava pouco desenvolvida”, aqueles que se viam obrigados a “construir imaginariamente os elementos de uma sociedade nova, já que esses elementos ainda não se manifestavam palpavelmente na própria sociedade antiga” (p. 12).

No embate político, o termo socialismo utópico passou a ter conotação negativa, contraposta ao socialismo científico, este sim, de significado positivo:

“Inicialmente, Marx e Engels davam o nome de utopistas àqueles cujas idéias precederam o desenvolvimento decisivo da indústria, do proletariado e da luta de classes, os quais não poderiam, por isso, levar estes fatores em consideração. Posteriormente, este conceito foi aplicado indistintamente a todos aqueles que, segundo Marx e Engels, não queriam ou não podiam ou não podiam nem queriam levar em conta esses fatores. Desde então, a denominação “utopista” passou a ser a arma mais poderosa da luta do marxismo contra o socialismo não-marxista” (p. 14).

A partir de então, o único socialismo com status de verdadeiro e positivo passou a ser o marxista, por princípio oposto ao utópico, identificado com o passado, o erro e o negativo:

“Em nossa época, ser “utopista” significa não estar à altura do moderno desenvolvimento industrial…” (p. 15).

Engels, em 1850, na obra Guerra dos camponeses alemães, afirmou que os teóricos alemães se apoiavam sobre os ombros destes homens,

“que, apesar de todas as suas fantasias e de todo o seu utopismo, figuram entre os pensadores mais importantes de todas as épocas, tendo antecipado inúmeras verdades cuja exatidão hoje verificamos cientificamente” (apud, p. 15).

Buber chama a atenção para o fato de que este reconhecimento não é atualizado, isto é, Engels não admite que, em sua época, outros homens também possam antecipar verdades, os quais são antecipadamente refutados pela “ciência atual”:

“Aqueles eram utopistas precursores; este são utopistas obstrutores. Aqueles preparavam o caminho para a ciência; estes o bloqueiam. Mas, felizmente, basta rotulá-los de utopistas para torná-los inócuos” (Id.).

Buber cita um exemplo que comprova o “método da pulverização do adversário por meio da rotulação” (Id.):

“No dia de Pentecostes de 1928, realizou-se em Heppenheim, onde eu então residia, um debate entre delegados socialistas procedentes, principalmente, de grupos religiosos, em torno da possibilidade de se tornar a fomentar as forças internas do homem, sobre as quais se apóia a fé da renovação socialista[1]. Ao tomar a palavra, discorri sobre as questões normalmente negligenciadas e sumamente concretas da descentralização e da forma de trabalho. “Não se deve rotular de utópico”, disse eu, “aquilo em que ainda não pusemos nossa força à prova”. Isso simplesmente não me impediu de ser alvo de uma observação crítica por parte do presidente que, simplesmente, classificou-se entre os utopistas, encerrando, com isso, o assunto”. (p. 15-16)

O conceito de socialismo utópico é, portanto, fruto do debate político e intensa polêmica. É preciso analisar o significado do termo utopista no contexto da disputa pela hegemonia no movimento operário.


* Todas as citações são de: BUBER, Martin. O Socialismo Utópico. São Paulo: Editora Perspectiva, 1971.

[1] As atas, intituladas “Socialismo à base da Fé”, foram publicadas em Zurique, em 1929.

7 comentários sobre “Martin Buber e o conceito de Socialismo Utópico

  1. Senhores conforme está apontado no Manifesto do Partido Comunista, Marx e Engelsse dizem comunistas e não socialistas (palavra da moda nos salões da burgusia), então como ser o sociaismo seu ideário , por que esconder qu o comunismo tanto em 1847 quanto em 2012 continua sendo desqualificando por marxólogos, neomarxistas, progressistas e social-democratas, sem falar na direita?

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  2. Caro Ozaí,
    Saudações cordiais!
    Como vc demonstra, é importante entender que, na época, havia um campo socialista/comunista de ideias e grupos em disputas por hegemonia sobre quais seriam os paradigmas válidos de percepção e avaliação do presente para a construção de expectativa sobre o futuro. Quem se diz “científico” e define o outro como “utópico” está efetivamente disputando por hegemonia num mercado de bens simbólicos que pode, inclusive, causar silêncio editorial sobre outro paradigmas críticos sobre o presente e sobre ideias de futuro.
    Enfim, acho pertinente lembrar tais dispositivos do jogo de hegemonia crítica entre os socialistas do passado para que, no presente, possamos avaliar como os campos de avaliação e percepção de presente e expectativa de futuro vêm sendo construídos por esquerdas e direitas.
    Abraços e parabéns,
    Alexander Martins Vianna

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  3. Antonio
    Bom dia
    Não tenho os conhecimentos teóricos que subsidiam teu comentário, portanto, não posso estar emitindo opinião satisfatória sobre o assunto em tela. Faço somente os reparos que seguem:
    – Os libertários e seus movimentos não têm proposições utópicas, e sim atuam in concreto dentro da realidade que os cerca. Não aguardam as tais condições objetivas, fazem somente hoje o que é possível fazer. Organizam-se e lutam.
    – Nos preocupa também que as proposituras de mudança social, políticas, econômicas, morais, etc. se embasem em idéias de cunho autoritário. A mudança se dá justamente no inverso, pelo menos assim pensamos, ou seja, com absoluta liberdade e não com ditaduras de Estado, de partido único, com lideres messiânicos e iluminados que objetivam seus interesses e não dos excluídos sociais.
    – As novas tecnologias ao contrário do que preconizam seus mentores têm piorado a situação do operariado, aumentando paulatinamente o grau de exploração. Persistem as mazelas sociais dos primórdios do Capitalismo, tais como a escravidão, o trabalho infantil, índices alarmantes de analfabetismo e sobremodo a exploração da mulher, sempre com salários menores que os homens.
    O centralismo prende o fazer das pessoas a vontade de um pretenso líder (ou lideranças), ‘que mesmo bem intencionado’ (as), pode (m) cometer equívocos, levando lutas seculares a bancarrota e profundos momentos de inércia dos movimentos sociais. Aliás, o que pode ter de cientifico e socialista numa (ou em) ditadura (s), a não ser a eliminação dos adversários, a tortura, os campos de concentração, o desterro para os gulagui e o servilismo como regra, mesmo dos prepostos?
    Cordialmente
    Pedro
    Caxias do Sul, 21 de outubro de 2012.

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  4. CAro Ozaí, em sua leitura quem ou o que seriam os proletários hoje – desempregado? Catador de lixo? os anônimos bancários e officers de repartições públicas e privadas? Onde estariam, em países capitalistas – G8 – ou na China, talvez nos BRICS? qual seria o amálgama ideológico que os uniria para a construção prática do Socialismo, que já é científico (na medida em que os dogmas religiosos se perdem e os dogmas tecnológicos se erigem), já é político (partidos), ideológico e até humanitário, mas não se manifesta na realidade palpável do dia a dia das pessoas que sonham com justiça, liberdade,

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    • Caro Volmer,

      boa tarde.
      Obrigado por ler e comentar.
      Suas questões são instigante e pertinentes à Sociologia do Trabalho. O objeto deste texto é simplesmente o conceito de “socialismo utópico” a partir de Martin Buber. O objetivo é estimular a leitura da obra deste autor e o tema “socialismo utópico e socialismo científico”.

      Abraços e ótima semana,

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