Produtivismo acadêmico – Sobre as dificuldades de escrever (2)

Se alguém nota que
estás escrevendo bem,
toma cuidado: é caso de
desconfiares… O crime
perfeito não deixa vestígios.
(Mario Quintana)

1171Um dos efeitos perversos do produtivismo acadêmico é o atropelo e, muitas vezes, o assassinato da língua de Camões. Na urgência de publicar violenta-se a “última flor do Lácio, inculta e bela”.[1] A pressa é inimiga da perfeição, afirma o dito popular. Nem se trata de exigir o texto perfeito, pois o erro é próprio do humano – o perfeccionismo é a angústia do ser que se eleva à altura dos deuses, mas encontra-se acorrentado à condição humana necessariamente imperfeita.

A precipitação é má conselheira, atropela o bom senso e exige muita paciência dos leitores. Autores encaminham textos sem a adequada revisão gramatical e ortográfica. Alguns nem se dão ao trabalho de utilizar a ferramenta de revisão disponível no editor de textos. Ausência ou excesso de autoconfiança? Preguiça intelectual? O editor do periódico e/ou professor orientador que se virem! Editores, pareceristas e professores que orientam etc., são convertidos em revisores.[2] Muitas vezes, veem-se diante de textos acadêmicos auto-proclamados científicos que exigem muito mais do que a revisão ortográfica e gramatical, ou seja, precisam ser reescritos. Isto é exigir demais, até mesmo dos revisores profissionais. Talvez o professor-orientador, pressionado por prazos e exigências formais se sujeite a este papel – o que, em muitos caos, reforça a pretensão à co-autoria.

Desconhecimento da língua? Dificuldades com a escrita? Provavelmente. Mas o infeliz do candidato a escritor vê-se obrigado a publicar, é pressionado por exigências acadêmicas – especialmente nos programas de pós-graduação. Por que se expor? Por que não tomar as precauções mínimas? Por que não utilizar os recursos tecnológicos à disposição? Por que não solicitar ajuda? Se é necessário, por que não recorrer aos préstimos do revisor profissional? O caminho que parece mais fácil nem sempre é o melhor. Pior é o auto-engodo. O ególatra não vê o óbvio, ressente-se diante da crítica quando deveria agradecer, permanecer alerta e nutrir a humildade.

Não por acaso, periódicos exigem que os textos sejam revisados antes da submissão e que o autor apresente declaração do profissional – há situações em que é exigido aos autores que encaminhem seus trabalhos a revisores indicados pelos periódicos, o que constitui reserva de mercado. Seja como for, há a necessidade de revisão. Isto sugere que os textos que porventura lemos – artigos, dissertações e teses – não expressam, necessariamente, o domínio da língua e da escrita por parte dos autores. As dificuldades neste campo são minimizadas e acobertadas pelo trabalho do profissional que faz a revisão – isto quando é encaminhado antes de passar pelos trâmites formais da academia. Quantos encaminham seus textos à revisão antes das bancas de qualificação e defesa ou mesmo depois? Entre os agradecimentos, geralmente registrados nos trabalhos acadêmicos, deveria constar a referência ao revisor. Como, em geral, esta é uma atividade profissional, o pagamento monetário parece suficiente.

A experiência docente e como editor de revistas tem demonstrado que escrever bem não é sinônimo de titulação acadêmica. O título de doutor ou pós-doutor não indica necessariamente habilidade na escrita ou ausência de dificuldades. O trabalho do revisor permanece necessário, bem como o alerta sobre o auto-engodo e a humildade de reconhecer as próprias limitações. Escrever bem é trabalhoso e exige aprendizado permanente. O tempo da escrita nem sempre se ajusta ao tempo do produtivismo acadêmico![3]


* Ver Produtivismo acadêmico – Sobre as dificuldades de escrever!, publicado em 15/12/2012.

[1] Soneto do poeta Olavo Bilac. Ele se refere à última língua derivada do latim vulgar falado no Lácio, região italiana, por camponeses e camadas populares. Apesar da sua origem popular, “inculta”, é uma língua “bela”.

[2] Ver, em Produtivismo acadêmico – Sobre as dificuldades de escrever!, a observação da Profa. Ana Maria Netto Machado sobre as dificuldades para escrever, mesmo após 15 ou mais anos de aprendizado formal da língua portuguesa.

[3] A propósito, sugiro a leitura de A arte de escrever e Como escrever?

13 comentários sobre “Produtivismo acadêmico – Sobre as dificuldades de escrever (2)

  1. Sejamos todos honestos. Primeiro: escrever nunca deveria estar incluído entre as práticas da industrialização mercadológica. Produtivismo não e o mesmo que criação. A questão é a seguinte, e todos sabem: a maioria dos “produtos acadêmicos” são fabricados por terceiros. São trabalhos pagos a profissionais desse mercado, geralmente para permitir aumentos de salários, além de porta de entrada aos recintos protegidos por estruturas econômicas, estatais ou privadas. Então, trabalhos acadêmicos são, de fato, relatos tecnológicos semânticos com o objetivo de mascarar a obstrução da inteligência e justificações do pensamento único, em todas as áreas, sempre com visão de mercado, jamais com objetivo de humanização e criação de novas formas de pensamento. A academia tornou-se, como outros grupos, uma tribo primitiva, com visão excludente contra os que não expõe sua tarja de identificação. Não se trata portanto de saber ou não as regras da escrita, trata-se, definitivamente, de uma ausência patológica de conteúdo civilizatório. Trata-se de uma ausência de compromisso com o presente, responsabilidade com o futuro e desrespeito à verdade histórica.

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  2. Meu caro, Ozai. Li com muito gosto este e outros ensaios que abordam os sintomas do produtivismo acadêmico. Também pude contribuir no mesmo sentido, quando fizemos um dossiê para ser publicado na revista Espaço Acadêmico.
    Então, seu escrito vem contribuir para professores e alunos procederem à autocrítica de seus escritos acadêmicos. Realmente existe a pressa e o descuido para publicar, afinal “ou publicamos ou perecemos” na visibilidade acadêmica de nossa época. Quando releio um ensaio ou artigo meu, publicado, sempre encontro erros que me chateia, daí meu pedido de desculpas aos leitores mais atentos sobre os mesmos.
    Penso que, por um lado existem aqueles cujo temor excessivo da crítica e autocrítica os impedem de escrever e publicar. Por outro, há aqueles que surfam na onda produtivista publicando “adoidado”, obviamente sem o devido cuidado de fazer uma boa revisão do texto.
    Como você sugere, é triste quando o orientador não procede a uma boa revisão no texto do orientando, ainda que ele não seja propriamente um “revisor” da língua portuguesa. Infelizmente é uma constatação que “O título de doutor ou pós-doutor não indica necessariamente habilidade na escrita ou ausência de dificuldades”. Por isso que é providencial os cursos superiores terem PICs durante o curso, e, no final, serem obrigados apresentar um TCC, dissertação, tese, para pelo menos o aluno documentar seu esforço de ter escrito um texto resultado de um projeto de pesquisa ou estudo. O mesmo deve ser consistente, apresentar coerência ao usar conceitos e categorias, sustentar objetividade [que é mais problemático nas Humanidades, pq tende ao senso comum, generalizações, abstrações, subjetivismos, e panfletismos]. Claro, o TCC é um dispositivo insuficiente, mas pelos menos cobra mais esforço do aluno [e da orientação] no sentido de o sujeito produzir um texto digno e se responsabilizar por ele. Sem dúvida, curso universitário que tem TCC no seu currículo contribui pelo menos para o aluno saber que precisa aprimorar a arte e técnica de escrever um texto digno da sua formação acadêmica resultado de pesquisa científica ou estudo sistemático.

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    • “sempre encontro erros que me chateia” – Tens logo um aqui: “Erros” é substantivo plural, logo devia concordar em número com o adjectivo “chateiam”.

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  3. Antonio
    Bom dia
    Talvez haja a possibilidade de considerarmos não só a necessidade de ajuda e revisão, mas também de observar os limites de nossa educação formal. Penso que ao chegar aos caminhos das pós-graduações (não excluídas aqui as graduações), o domínio da língua portuguesa, no particular da gramática e das normas de apresentação de um trabalho escrito (ABNT) deveriam já estar superadas. Pelo visto tal não está ocorrendo. Fortalecesse, portanto, em nossa ótica a indústria dos trabalhos encomendados, das “colas” cibernéticas e das revisões, que nos parecem descaracterizar de todo o aspecto da pesquisa cientifica. Penso humildemente que o foco do ensino fundamental e do médio deva ser a língua portuguesa. Aos alunos que desejarem pleitear o seguimento nos bancos escolares superiores exigência mínima se faz o domínio da gramática e da escrita – redação. Obvio que somente esse saber – competência – não elide a necessidade de acompanhamento individualizado, apoio instrumental e psicológico e mesmo a necessidade da revisão. A revisão em conclusão deveria vir em complemento e não em sustento do trabalho de pesquisa realizado.
    Abraços
    Pedro
    Caxias do Sul, 02 de julho de 2013.

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  4. Que pertinente essa discussão, Ozaí. Faço revisão de textos, mas geralmente não tenho tempo de fazer as minhas…e daí. Bom, errar é humano, perdoar é divino…não sei. Mas tudo que sei é que se a discussão proposta é boa e pertinente a um pós graduação ou se está em pauta não se deve inviabilizar uma discussão em virtude de “erros”. A solução de muitos programas é ter um revisor para fazê-lo. Agora quanto a coautoria não deveria nem existir. Os alunos precisam ter mestria, ter alteridade e escreverem sem um Pai-orientador. São tantos os problemas, pois os mestrandos, geralmente, pesquisam os orientadores lapidam o texto e depois têm a cara de pau de dizer que o trabalho é só do doutor. Agora o contrário também ocorre. Para mudanças estruturais na área da língua seria necessário buscar formatação acadêmica desde o colegial, mas isso, nunca ocorre.

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  5. Bom dia caríssimo!
    A temática deste texto é de altíssima relevância. Pensar sobre o produtivismo acadêmico têm sido algo que ao meu ver deve nos preocupar. Estamos a nos deixar conduzir por uma esteira de produção do conhecimento, como se este pudesse ser amadurecido na velocidade em que produzimos objetos iguais, que a priori nenhuma reflexão pós-produção nos é solicitada. Para mim um dos maiores prolemas que enfrentamos na academia é escrever com coerência. É atentarmos para nossa responsabilidade ao colocarmos um texto a apreciação do público. Lembrando que se escrevemos, nos expomos, e se nos expomos devemos aceitar e compreender as criticas como necessárias, já que sem elas em nada evoluímos. O tempo hoje tem significação diferenciada, e entendermos que não somos donos de verdades perfeitas, que somos inconclusos, e que isto nos torna eternos perseguidores do saber, será nosso maior desafio.
    Uma excelente semana a tod@s.
    Lúcia

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  6. Este assunto estava mesmo precisando ser discutido. Parabéns, Professor. Eu que nao tenho revisor da lingua portuguesa e que nem sempre posso pôr os acentos necessarios (este, p/ex), peno ao escrever na minha lingua e talvez por isso tenho admirado a agilidade mental e a precisao linguistica dos articulistas do mundo acadêmico atual. Nem sempre, porém, é o caso dos jovens universitarios que, como é compreensivel, pensam mais depressa do que escrevem e nao cuidam do proprio instrumento de comunicaçao. Afinal, nem todo o mundo pode ou precisa tocar um estradivario, mas afinar o proprio violino é indispensavel.

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