Crise política e mistificação da história!

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Nestes tempos de turbulências políticas, de analfabetismo político que desafia a sabedoria do senso comum, de ignorância titulada e doutoramentos em Ciência Política pelos meios de comunicação e redes sociais como o Facebook[1], tornou-se comum valorizar a História, a leitura e o aprendizado histórico. Memes[2] ironizam a ignorância e convidam os incautos a estudar a História do Brasil.

De fato, chega a ser trágico os argumentos dos paladinos da ética na política que defendem abertamente a intervenção militar. Isto, com o beneplácito da boa-fé, se considerarmos o balbuciar como argumentação. Em muitas falas, o que se observa é, simplesmente, o irracionalismo que nutre o ódio, o preconceito e o fanatismo anticomunista – o que mostra bem o risível e, simultaneamente, a tragicidade da demonização da cor vermelha. Então, talvez seja pedir demais o esforço pelo discernimento histórico.

Diante deste quadro, é compreensível que receite-se o estudo dos eventos históricos enquanto tratamento intensivo para a cura da ignorância. Aliás, não é de hoje que os esclarecidos encontram no conhecimento o antídoto para promover o progresso da humanidade. Ignorar é desconhecer, não saber. Portanto, campo fértil para o desenvolvimento das superstições, da irracionalidade. A afirmação da razão, do esclarecimento, deveria livrar a humanidade desses flagelos. Afinal, como diria Goya: “O sono da razão produz monstros”.

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Não obstante, a política necessita do apelo aos instintos, aos medos e inseguranças, às paixões humanas. Ou seja, o irracional não é expulso da esfera da política. Por outro lado, a razão iluminista também se mostrou limitada. Parodiando o grande pintor espanhol: “A razão desperta também produz monstros”. [3] O século XX demonstra o quanto a razão foi instrumentalizada – vide as guerras mundiais, a máquina de extermínio nazista, as bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki. Aliás, ainda no século XIX, Goya presenciou a barbárie perpetrada pelo exercito napoleônico, pretenso guardião da modernidade civilizatória e do progresso.

Mas, voltemos ao Brasil. Aqui, a ironia dos memes ganhou ares de seriedade. Não é incomum encontrar intelectuais bem-intencionados e esclarecidos que creditam à falta de conhecimento histórico a postura política dos ignorantes. Lições de história, comentários sérios, etc., são dirigidos aos cândidos e pretensamente desconhecedores da nossa história. Os sensatos e iluminados parecem acreditar no diagnóstico e, portanto, na terapia indicada!

Ora, desde quando o saber formal e conhecimento histórico são determinantes para a definição de posições políticas? Ensino formal tem uma relação direta com educação política? Anos de escolaridade formam cidadãos politicamente críticos? Em suma, conhecimento histórico é fator que determina posição ideológica democrática e de esquerda?

image-6-225x300Imaginar que conhecimento histórico determina a posição política, necessariamente crítica e à esquerda, é cultivar a ingenuidade. Fosse assim, e não teríamos historiadores assumidamente com posturas de direita. Conheço professores de História que não tem qualquer pudor em defender o golpe civil-militar de 1964; conheço sociólogos e pretensos cientistas políticos elitistas, meritocráticos e defensores do capitalismo. A sociologia nasce enquanto ciência legitimadora da modernidade burguesa. Como professor, observo que conteúdos críticos não interferem em habitus e opiniões cristalizadas. O discente “aprende” o conteúdo de maneira formal e sua posição política permanece inalterada. Saber histórico e sociológico não são sinônimos de posições políticas críticas.

Por outro lado, conheço semi-analfabetos, pessoas que aprenderam a ler e escrever por esforço próprio, que pouco frequentaram os bancos escolares, menos ainda a universidade, mas que são bem informados e cidadãos críticos, democratas e com opiniões políticas no campo da esquerda. Conhecimento escolar e da história do país não define se o indivíduo é de direita, esquerda.A questão é mais complexa, envolve outros fatores. Nossas escolhas políticas podem ser equivocadas ou corretas, independente do grau de escolaridade e do saber histórico.

Devemos valorizar a História, os historiadores e os nossos professores que contribuíram com a nossa formação. Em muitos casos, suas posturas reforçaram e ajudaram a desenvolver o pensamento crítico que acalentávamos. Noutros casos, despertaram a consciência e a tendência ao engajamento político. Mas, talvez na maioria das vezes, não tiveram qualquer influência sobre as escolhas políticas e os caminhos que percorremos em nossa vida. Provavelmente até tiveram a resistência de indivíduos que se contentaram em memorizar os conteúdos para “passar de ano”. Assim, não exageremos. Ainda que muitos nos irritem com sua ignorância histórica – o que nem sempre é o caso – não esperemos em demasia do conhecimento sobre a História. Neste caso, a excessiva valorização da História apenas confirma a sua mistificação!

[1] Sugiro a leitura de “Aos instantâneos Doutores em Política das redes sociais”, de WELLINGTON FONTES MENEZES. Disponível em https://espacoacademico.wordpress.com/2016/03/24/aos-instantaneos-doutores-em-politica-das-redes-sociais/

[2] O termo meme provém do grego μιμἐομαι (“mimema”, que tem a mesma raiz de mimese, e significa, portanto, “imitação”). Ver: https://pt.wikipedia.org/wiki/Meme

[3] Ver: “Razão e Paixão”, disponível em https://antoniozai.wordpress.com/2012/09/29/razao-e-paixao/

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