Para além do bem e do mal!

Em Os Irmão Karamazóvi[1] o personagem de Dostoiévski afirma que se o ser humano não tivesse inventado Deus não haveria civilização. Ele retoma a frase de “um velho pecador do século XVIII”: “Si Dieu n’existait pas, il froudait l’inventer” (“Se Deus não existisse, precisaríamos inventá-lo”). Ivã Fiódorovitch, em diálogo com o irmão caçula, Aliócha, retoma o dito voltaireano e aprofunda o argumento: “E, com efeito, foi o homem quem inventou Deus. E o que é espantoso não é que Deus exista realmente, mas que esta idéia tenha vindo ao espírito de um animal feroz e mau como o homem, tão santa, comovente e sábia é ela, tanta honra faz homem. Quanto a mim, renunciei desde muito tempo a perguntar a mim mesmo se foi Deus quem criou o homem, ou o homem que criou Deus” (p.176).

A crença no humano, que transparece na fala de Ivã, é algo simplesmente admirável. Fez-me lembrar uma conversa recente com o meu amigo Walterego sobre o preconceito e o racismo. Eu, influenciado pela leitura de Os jacobinos negros[2], fiz um breve comentário sobre a minha dificuldade em compreender uma época na qual o ser humano foi escravizado e sofreu as mais bárbaras crueldades apenas e somente porque seu organismo continha mais melanina. No entanto, disse-me o amigo, é admirável do que o humano é capaz de criar para e pelo bem.

Como é possível o humano, um ser propenso ao mal e com a capacidade de cometer atrocidades as mais terríveis e indescritíveis, até mesmo em Nome de Deus, ser capaz de criar uma idéia tão pura e liberta de todo o mal? A resposta dos que pensam em moldes dicotômicos, dos que concebem o mundo maniqueisticamente enquanto a mera contradição entre o bem e o mal, é simples e simplista. A questão é mais complexa, pois se refere à complexidade do ser humano. O mesmo ser humano capaz de praticar o bem pode se revelar, com toda intensidade, a própria encarnação do mal. No mais bondoso do homem, na mais pura e inocente bondade de uma criança, de uma mulher, habita o mal.

Como escreve João Guimarães Rosa: “Tudo é e não é… Quase todo mais grave criminoso feroz, sempre é muito bom marido, bom filho, bom pai, e é bom amigo-de-seus-amigos! (…) Querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo o mal, por principiar”.[3] Os eventos históricos estão repletos de exemplos. Os nazistas banalizaram o mal, mas, no entanto, eram cultos, bons pais, boas mães, bons filhos, boas filhas, bons maridos, boas esposas, etc.

Tudo é e não é! Para minimante tentar compreender a natureza humana é preciso ir além do dualismo e maniqueísmo. O desafio é pensar dialeticamente. Aliás, também há os pretensamente dialéticos que imaginam existir uma essência humana boa, civilizada. Eis que o humanismo ingênuo anda de mãos dadas com um certo pensamento que se considera materialista e dialético. Ora, o homem civilizado abriga em si o bárbaro – os próprios conceitos de civilização e barbárie precisam ser rediscutidos, pois que bárbaro é sempre o outro e, invariavelmente, este é um argumento para a opressão de povos tidos como inferiores. As luzes da razão iluminista podem brilhar tanto a ponto de cegar e não nos deixar ver a barbárie perpetrada pela razão.

A natureza humana também incorpora o mal. Como bem observou o florentino, no século XVI, tolos os que agem considerando apenas a propensão humana à bondade, ao bem. Eles se surpreenderão com a capacidade do humano em fazer o mal. Como afirma o personagem de Dostoiévski:

− Penso que se o diabo não existe e foi por conseguinte criado pelo homem, este deve tê-lo feito à sua imagem (p.176).

− Cada homem oculta em si um demônio… (p.181).

O ser humano incorpora em si Deus e o Demônio, o bem e o mal. Muitas vezes, na busca do bem, ele adota práticas que devem enrubescer o demo. Por outro lado, nem todas as boas ações produzem o bem, podem até mesmo gerar o oposto. Para Maquiavel, de um ponto de vista político, o que conta mesmo é o resultado alcançado. É nisto que, em última instância, reside o julgamento humano. Pelo menos no que diz respeito às coisas humanas na esfera terrestre. O humano, demasiado humano, como diria Nietzsche, é muito mais complexo do que a vã filosofia do humanismo cândido. Quanto ao sobrenatural, fica a critério da imaginação de cada um…


[1] DOSTOIÉVSKI, Fiódor M. Os irmãos Karamázovi. São Paulo: Abril Cultural, 1970.

[2] JAMES, C. L. R. Os jacobinos negros: Toussaint L’ Ouverture e a revolução de São Domingos. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.

[3] ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976, 11ª ed., p.12 e 16.

5 comentários sobre “Para além do bem e do mal!

  1. Salvo por um exemplo ou outro de demonstração inequívoca de solidariedade e amor à espécie humana, a maioria tem demonstrado estar muito mais perto do “demo” que de Deus.
    Somos complascentes e condescendentes com nossos familiares, amigos, indicações desses ou daqueles.
    Porém, com o resto da humanidade somos absolutamente desconectados, intolerantes, críticos, inimigos até.
    As guerras, revoluções, grupos paramilitares e separatistas, terroristas e movimentos racistas, intolerância religiosa, a competição entre elas, o descaso com o sofrimento alheio, milhões que morrem de fome todo o ano, por falta de remédios, saneamento básico, enfim, o quadro que temos pela frente não é nada animador ou esperançoso de um mundo melhor, ao contrário.
    Portanto, afloram a crueldade, o descaso, o ódio, a raiva, a vingança, a inveja, a violência, infinitamente mais que os conhecidos sentimentos ditos como humanos que estão em desuso há muito tempo, tais como, a solidariedade, a compreensão, o entendimento, a civilidade, a educação e o respeito.
    Nem falo do amor por ser atualmente desconhecido por todos nós.
    Dito isso, se já agimos deferentemente com pessoas e situações que não concordamos, igualmente foi assim em passado recente com gente que não tinha a cor da pele dos europeus.
    Castigo: a escravidão ou vida inferior.
    O interessante é que não se viu movimento religioso no combate a este comportamento detestável e repugnante por parte do branco.
    Homens que se julgavam civilizados, cultos, tementes a Deus, solidários, honra e caráter inatacáveis, ficaram em silêncio, permitiram que a besta que habita em nós comandasse esta segregação vergonhosa, esta chaga em nossa história.
    Ora, diante disso, Deus vem perdendo clamorosamente o seu significado à raça humana de amor, de ter prometido o paraíso a quem obedecesse seus mandamentos.
    Das duas uma: ou deixam os de acreditar em suas promessas ou o apelo dos instintos mais cruéis se sobrepõem aos sentimentos nobres, uma espécie de a vida tem mais graça na dor e sofrimento que na alegria e felicidade!
    Estamos insanos?
    Perdemos o rumo de nós mesmos?
    Alguma sugestão ou idéia ORIGINAL para mudarmos o curso de uma história recheada de mortes, conflitos, prejuízos materiais e mentes confusas e obtusas?
    Existe algo a ser feito que priorize efetivamente a importãncia pela decência e honestidade ao invés da corrupção e más intenções?
    Ou haveria alguém que se atrevesse a apontar quem são os culpados que nos conduziram e ainda nos transportam através da barbárie, da desconfiança, de se querer permanentemente o prejuízo alheio?
    Seria, talvez, o Deus que teimamos em dizer que é pessoal ou o Deus que nos ensinaram a reverenciar e, no entanto, o que se viu e vê é que somos muito mais frágeis que resistentes às tentações e desejos?
    Oprimir causa maior prazer que a amizade?
    Humilhar é mais interessante que oportunizar as mesmas condições?
    O conhecimento ficou restrito a uma casta que, acomodada em si mesma, não a transmite às demais pessoas sequiosas pelo saber?
    Nessas alturas, e de modo que eu encerre o longo texto, deixo no ar a seguinte questão:
    Podemos encontrar na ciência ou na filosofia ou na religião uma definição do ser humano apropriada ao tempo atual?

    Curtir

  2. Gostei muito do comentário da Regina. Lembrando ainda que na África, tribos rivais faziam escravos umas das outras, para vender aos europeus (mais vantajoso do que matá-los), creio que isso reforça duas teses: (a) a motivação “em última instância” é sempre econômica (mercantil, no caso); (b) o que facilita o ódio é apenas a diferença (seja de cor, de tribo, de ideologia…).

    Curtir

  3. Muito interssante a sua leitura de Dostokievski, Professor.
    Haveria muito o que dizer, mas so queria retomar sua conversa com seu amigo Walterego, em que que fala de sua dificuldade em ” compreender uma época na qual o ser humano foi escravizado e sofreu as mais bárbaras crueldades apenas e somente porque seu organismo continha mais melanina.”
    Embora também ache que o fato da era mercantil da historia da humanidade ter estreado e sido possibilitada pela transformaçao em mercadoria da populaçao de todo um continente é coisa dificil de entender e/ou de explicar, tenho a impressao que a melanina entra ai’ como uma espécie de etiquetagem, pois ficava mais facil diferenciar o “ser humano coisificado” – o negro – do “ser humano mercador da coisa humana” – de modo geral os habitantes do hemisfério norte. Ou, tirando as consequências, os que se transformam em senhores dos que ficam escravos – e ai’ entra Deus, mais uma vez instrumentalizado, para naturalizar essa tremenda hecatombe, que veio completar o genocidio dos povos autoctones da América.
    Mas isso ja esta parecendo conversa do Ivã com o Aliocha.
    Boa-noite e aproveito para sugerir uma crônica do blog sobre C.L.R. JAMES e sua obra.
    Um abraço,

    Curtir

Comente!